domingo, 30 de abril de 2017

CERTIDÃO DE NASCIMENTO

Capa do folheto 500 anos (Arquivo JRS)


               Neste dia, 1ºde maio, além de celebrarmos todas as lutas e conquistas da classe trabalhadora, comemoramos o nascimento oficial do Brasil. Ou seja, foi nesta data, em 1500, que Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei de Portugal (D. Manuel I) a respeito do achamento desta terra e de suas características. Por isso, selecionei algumas passagens desse documento, reforçando que nós, caiçaras, estamos desde então presentes e numa constante re-construção neste chão.

                    Senhor:
               Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que para o bem contar e falar – o saiba pior que todos fazer.
               Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.
               A partida de Belém [porto de Lisboa], como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março [...] E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas da Páscoa, que foram 21 dias de abril ... [...] Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras terras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs o nome – o MONTE PASCOAL e à terra – a TERRA DA VERA CRUZ.

            Ao desembarcarem:
           O Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho [...] E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali haviam dezoito ou vinte homens.  Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.

               Descrição das pessoas que acharam esta terra antes dos portugueses:
               A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas, e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Trazem os beiços furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros [...]. São encaixados de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas.

                   Querendo saber mais dos habitantes:
               Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram lhe um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram com que espantados.
               Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como que dizendo que daria ouro por aquilo.

               Lógico que a carta não poderia deixar de citar as mulheres! Se encantaram!
               Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos e pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. [...] E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhes tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela.

                       Era preciso rezar diante disso tudo:
               Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ouvir a missa e pregação naquele ilhéu. [...] E ali com todos nós outros fez dizer a missa, a qual foi dita pelo padre frei Henrique [...] e ouvida por todos com muito prazer e devoção.

               Seguiriam para as Índias, mas deixariam dois degredados [excluídos da sociedade portuguesa] para obterem mais informações na convivência por tempo indeterminado:
               Muito melhor informação da terra dariam dois homens destes degredados que aqui deixassem.

               Mas todo mundo queria se deslumbrar um pouco mais antes de prosseguir a viagem:
               Alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, porém, a coisa de maneira que todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhe davam.

                 Outros detalhes da terra:
               Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não mui altas, em que há muito bons palmitos.  Colhemos e comemos deles muitos.
               Foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma peça só, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio em esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro.

               Desde o começo os primeiros habitantes eram prestativos, queriam agradar:
               Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se tanto conosco que alguns nos ajudavam a acarretar lenha e meter nos batéis.

                     Tinham interesse por novidades:
               Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E, creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro [...] porque eles não têm coisas que de ferro seja, e cortam suas madeiras e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas. E era já a conversação deles conosco tanta, que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.

                      Outras possibilidades:
               Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença. [...] Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim.

               A mandioca ainda não lhes foi apresentada. Deram-lhe um nome que conheciam de outras paragens:
               Eles não lavram, nem criam [...] Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam.

              Mais gente queria ficar na terra:
               Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram dessa nau de esquife, fugidos para a terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a deus, fazemos daqui a nossa partida.

                Enfim...
               Não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro [...] Porém, a terra  em si é de muito bons ares, assim frios e temperados [...] Águas são muitas.

               Ah! Ia me esquecendo! Antes de finalizar a Certidão de Nascimento do Brasil, Pero Vaz de Caminha pede um favor político: 
               E pois que, Senhor, é certo que, assim  neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge Osório meu genro – o que d’Ela receberei em muita mercê. ObservaçãoPara ser deixado numa ilha, o genro não devia ser boa coisa, mas com apadrinhamento político se consegue muita coisa. E continua sendo assim até hoje!

            Beijo as mãos de Vossa Alteza.
           Desse Porto Seguro, da vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro de maio de 1500.


               

terça-feira, 25 de abril de 2017

AS PRIMEIRAS MADRES EM UBATUBA (II)

Marco da Praça, no Ipiranguinha (Arquivo JRS)

               As primeiras povoações brasileiras nasceram sob a moral religiosa. Ubatuba, fundada em 1637, não poderia ser diferente. No bairro do Ipiranguinha, onde moro há mais de 20 anos, também tem o mesmo princípio formador: foi uma religiosa (Irmã Sofia) que, em 1965, iniciou um trabalho muito importante nesse bairro, convidada por um professor que professava outra religião. “Era crente”. O trabalho dessa madre foi tão marcante que até lhe homenagearam com uma praça.  Mas o legal é escutar o depoimento dessa mulher: “O professor Fernando fundou uma escolinha no Ipiranguinha e me convidou para ensinar o catecismo às crianças das famílias católicas. No começo eu ia a pé, mas logo compramos uma Kombi para facilitar o trabalho”.

               A ação da Irmã Sofia inicialmente era com as crianças, cultivando nelas propósitos morais: não beber, não fumar, se comportar bem na escola, respeitar os mais antigos etc. Em seguida, auxiliada por senhoras católicas (Dona Maria Guatura e Dona Iracema), Irmã Sofia incentiva, em mutirões, a construção de um Centro Social. O terreno foi doação do Senhor Acácio à Congregação das Cônegas de Santo Agostinho. Porém, Irmã Sofia, já chamada por todos por Madre, achou por bem não ficar com o terreno. “Nós já estávamos com muito terreno na cidade. Assim, doamos aos frades conventuais franciscanos, cujo vigário era Frei Francisco Calderoni. Mais tarde esse religioso comprou mais três ou quatro terrenos  para fazer uma pracinha em frente à igreja para o povo se reunir em dias festivos”.    
     
        Nessa Obra Social as pessoas aprenderam artesanatos (costura, crochê...) e ofícios (pintor, encanador, eletricista...) e receberam aulas de catecismo. Por volta de 1980, quando eu fui conhecer o bairro, encontrei além da Madre Sofia, o professor Pedro Paulo Scandiuzzi e o leigo Carlinhos, um caiçara natural da Ilha do Promirim. Que comunidade bonita! Posso dizer que esses três se entregavam ao trabalho com o apoio das pessoas de boa vontade do bairro. Assim, com o incentivo dessa religiosa, foi fundada a Sociedade dos Vicentinos e a Sociedade Amigos do Bairro.  Mais tarde, conforme depoimento do Seo Benedito, assumiram a luta para se criar uma escola no bairro. “As crianças estudavam no salão do Centro Social, mas eram muitas para o pequeno espaço. Assim fomos atrás das autoridades. Eu viajei muitas vezes até Caraguatatuba por conta disso. Em São José dos Campos, conseguimos um encontro com Dr. Chopin Tavares de Lima, da Educação, que nos garantiu a construção de uma escola. Assim, desde meados da década de 1980, temos a Escola Idalina do Amaral Graça”. Desse modo surgiu e cresceu o bairro do Ipiranguinha!


               Hoje, ao passar pela Praça da Igreja, ao ler os dizeres do marco, é bom saber que nós temos o dever de cultivar a memória de Madre Sofia e de tantos pioneiros desse nosso lugar. E como se faz isso? Com uma boa educação!

sábado, 15 de abril de 2017

MÁQUINA DO TEMPO

Lendo para as crianças (Arquivo JRS)


               Hoje comecei o dia lendo Rubem Alves. Tem uma passagem que é muito interessante, sobretudo quando nos identificamos como bons escutadores de histórias que também gostam de contar causos. É assim: “Já houve um tempo em que fui criança [...] O tempo é isto: o poder que faz com que coisas que existem deixem de existir para que outras que não existam, venham a existir [...] Eu posso passear no seu mundo, que existe. Mas eu gostaria que vocês passeassem no mundo da minha meninice, que não existe mais. Acho que vocês gostariam, porque era um mundo tão diferente...”. E, seguindo a narrativa, ele diz que “é preciso embarcar numa Máquina do Tempo”, que ela “está dentro da nossa cabeça”. “Ela se chama imaginação”.  Lindo, né?!?
               Eu gosto de ouvir coisas atuais, mas adoro quando contam situações vivenciadas em outros espaços e em outros tempos. Ah! Quantos causos! E quando eles vinham sob luz bruxuleante, de lamparinas que pareciam estar nos últimos suspiros, nos convidando para dormir?!? Coisa boa demais!!! E quando eram histórias de assombração, que nos arrepiavam por toda a narrativa?!? Pior era depois ter de sair para o terreiro, pois na minha meninice não havia banheiro dentro de casa. A solução era o cisqueiro (“usar o mato”) ou o penico. Olhar aquela escuridão, os salpicados pontos luminosos dos vaga-lumes... escutar os sapos, a nimbuias e toda a passarinhada da noite era alimentar a nossa imaginação medrosa. Mas era preciso se superar diante da pergunta-ordem da mamãe: “Todo mundo já mijou antes de ir pra cama?”.
               Num desses dias, comentando uma situação de medo de escuro, afirmei que as assombrações do meu tempo de criança desapareceram depois que chegou a luz elétrica. A nossa imaginação perdeu força com essa tecnologia, essa “facilidade da vida”. Coitadas delas (das assombrações)! Ah! Mas também apareceu a televisão substituindo os contadores de causos, de histórias que embalavam nossas vivências! E hoje, aparelhos mais modernos enfeitiçam nossas vidas, transferem os prazeres para outras esferas, nos tornam mais egoístas, indiferentes para esse mundo tão próximo, de pessoas tão concretas. A função deles? Criar outras necessidades (comprar computadores e outros equipamentos de última geração,  games etc.), gerar outras dependências que garantam os lucros de uma mínima parcela da população, deixar a autonomia mais longe no horizonte da utopia!

               Ontem encontrei o pai da Tainá, uma ex-aluna que não vejo há mais de dez anos. “Ela se casou, vive na Islândia. Eu tenho uma linda netinha”. E já foi puxando, do celular, uma série de imagens de uma terra muito distante de Ubatuba, onde Tainá nasceu e se criou. E, empolgado, me mostrou desenhos de animais e plantas tropicais: “São trabalhos, aquarelas da Tainá. Ela agora está aqui. Na semana que vem certamente você a verá, pois ela vem nos fazer uma visita”. E a minha Máquina do Tempo é ativada pela menina tranquila, estudante, num tempo que a Internet ainda era para poucos a grande novidade.

sábado, 8 de abril de 2017

OUTROS TEMPOS DA PESCA

1960 - Cercando tainha no canto do Acaraú (Arquivo Igawa)


A PESCA EM UBATUBA 

O amigo Peter, em seu blog (canoadepau.blogspot.com.br) nos apresenta, via estudos do professor Diegues, caiçara de Iguape, coisas interessantes a respeito da pesca e da vida dos caiçaras em Ubatuba, há mais de quarenta anos, quando ainda não existia a rodovia entre Ubatuba e Paraty. Vale a pena ler o texto completo!


Interessante resgatar este documento que apresenta "subsídios interessantes a respeito da evolução da produção pesqueira e das técnicas de captura, das condições de comercialização, das relações de trabalho e participação social".
Embora seja um documento editado pela SUDELPA, a maior parte dos dados apresentados foram coletados pelo Prof. Antonio Carlos Sant'Ana Diegues entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970 em viagens de campo feitas em Ubatuba.

O que torna este estudo especial é que ele compõe um quadro da atividade pesqueira de Ubatuba em uma época de sensíveis mudanças socioeconômicas e culturais que impactaram fortemente a região. A abordagem do Prof. Diegues revela um panorama completo da percepção dos pescadores sobre questões como o impacto da abertura da BR e outros aspectos relevantes tais como: Histórico da atividade pesqueira em Ubatuba,  Produção por Espécie em Ubatuba, Valor da Produção,  Distribuição dos Pescadores por Praia, Tecnologia e Produção, Participação Social,  Dificuldade e Aspirações, Quadro de produtividade do cerco flutuante, etc.
Tudo isso permite um verdadeiro mergulho na atividade pesqueira de Ubatuba do início dos anos 1970 fornecendo valiosos dados que nos permite avaliar as mudanças e as não mudanças que ocorrem nos dias atuais, meio século depois.

Abaixo um trecho do TEXTO COMPLETO de "A PESCA EM UBATUBA, estudo sócio econômico", Antonio Carlos Sant'Ana Diegues, SUDELPA, 1974. 

"Por outro lado, o contato maior do embarcado com os centros urbanos maiores como Santos e Rio de Janeiro faz com que ele vá absorvendo valores urbanos que se manifestam inicialmente na maneira de se comportar, no modo bizarro de se vestir imitando os jovens da cidade, etc. Nas praias como Picinguaba, no "claro" pode-se observar os jovens embarcados trajando camisas estampadas, calças justas e usando cabelo comprido, fenômeno que não se encontra nos artesanais das praias geograficamente mais isoladas.

Um outro sistema de vinculação com as atividades agrícolas é o uso ou não do forno de fazer farinha de mandioca. Enquanto que 29,5% dos artesanais afirmavam ter o forno, somente 15.5% dos industriais o possuíam. Dentro das sub-categorias a diferenciação é até mais significativa, pois entre os artesanais "donos dos aparelhos de pesca" a porcentagem se elevava a 37.1% enquanto que para os camaradas, não passava de 12.5%. Evidentemente a subcategoria dos mestres de barco é a que mais se identifica com a pesca: nenhum deles exerce outra atividade paralela e não tem forno de farinha.

Em termos de praias é interessante se observar, que a atividade agrícola exercida conjuntamente com a pesca pelos artesanais é mais presente em praias como Ubatumirim, Camburi, ao norte do município. Aliás é Ubatumirim que possui o maior número de agricultores nessa parte norte do município e eles são fornecedores de farinha de mandioca para Picinguaba, núcleo agora mais especializado na pesca da sardinha. Já nas praias mais próximas à cidade as atividades complementares não são agrícolas e sim do ramo de serviços (construções civis, biscates, etc.) como é o caso do Lázaro, Enseada e Maranduba.

Quanto a algumas características gerais da população de pescadores é desnecessário se afirmar que vivendo em sua grande maioria em situação de extrema marginalização, pois seus rendimentos em geral só lhes permitem a sobrevivência, os pescadores apresentam baixos índices de alfabetização".

quinta-feira, 6 de abril de 2017

SANAPISMO

 
No Hotel Picaré (Arquivo JRS)

Galeria desse tempo (Arquivo JRS)


              A amiga Fátima, como sempre, relembra de outros tempos, de outras convivências, quando até doenças eram curadas graças a esse saber herdado de nossos antigos: índios, negros e portugueses que resultaram no ser caiçara.Parabéns mesmo!

Antónho hoje chegou tão aíbo, arribado, que só largou as tralhas de pesca no canto da casa e se bardeou na cama. Tava ca cara tão encarnada como um camarão cozido. Um febrãoooooo, tão grande, mais tão grande, mais tão grande que cuá. E o tremô de frio... Santisso, que que vou fazê com esse hôme anssim, dessa jeito agora, Sinhô?
Matutei com meus caraminguás: - Tor Piza não tá aí na casa dele, no Tinóro. Agora, despois que ele se meteu com a perfeitura, não tem tempo mais pra acudi a gente, nessas horas de tromenta.. Tem o Filhinho... Mais essas hora ir amolar o homem... é capaiz dele sortá a estiranda ni nóis. Pai do céu!
Pensa mulhé de Deus, pensa, pensa só um cadinho, o que vois mecê vai fazê pra cuidá de Antonho, seu marido?
Doutra vez que se assuscedeu-se isso, se assucedeu com nosso filho Bidiquinho.
Bidiquinho, meu filho, foi reiná no rio atrás de camarão pitu ou mandi, sei lá o quê. Só sei que foi lá pras banda da Jundiaquara, e vortou anssim, quente. Tão quente, mais tão quente, que a cara dele parecia aquela abroba moranga, aquela que os pescadô quenta no barco pra jogá guela adentro do titureira. E Bidiquinho agonizava de tanto tremô. A diaba carcumia ele. Ele dilirava. Ele gimia como meu ingenho de cana.
Um anjo de Deus acendeu uma lamparina na minha cachola embananada pelo disispero.
Passei a mão no pote de banha de galinha, espalhei um punhado anssim, lambuzei uma mãozada daquela meléca, num pedaço de papé pardo, um papé que veio de pacote da venda do Reiné Vinherão, aí espalhei bem. Quentei anssim, anssim na boca do fogo. Quando ficô bem quintinho e não pelando, emprastei no peito do Bidiquinho.
Daí cogitei mais ainda. Rifriti: - Acho que vou milhorá isso. Corri na casa de Sinhá Josefa. Cheguei lá arfando: - Sinhá Josefa me acuda, perciso de umas folha de baga, pra mode curá meu filho Bidiquinho.
Então ela disse: - Não é baga, mulhé de Deus, é mamona. Donvirgina Lefreva já não disse pra nóis falá certo? Então é mamona. Aí eu disse: - Que seja, me dê cá a tar mamona.
Cheiguei em casa peguei as folhas, quentei no fogo, moquequei anssim na minha mão e enlheei nas pernas de Bidiquinho meu filho.
Cochei uns trapos velhos em vorta pra não sortá. Gasalhei ele bem com as cuberta. Até a corcha que ganhei de casamento da comadre Ritinha entrou. Uma corcha linda de retalho que só ela sabia fazê. Hum... arrelá comadre Ritinha, que Deus a tenha na sua Santa Glória.
Tudo isso com a janela fechada e no escuro. Pra mode que a luz não estragasse o sirviço.
Bão, ele dormiu, e eu lá velando ele. Uma hora me bateu uma fome de arrancá cipó, de tirá imbé. Fui até a cozinha, passei a mão num rabo de peixe seco, que tava pra cima do fumeiro, espalhei um pouco de brasa do fogão, deitei a bicha ali, e deixei i amolentando.
Coei um café, e mandei pro bucho. Café amargo com uma cuia de farinha e peixe assado. Ô cuá! Que diliça! Vortei pra cabeceira do meu filho, e anssim passei a noite toda. Entre um cochilo e outro, dava uma pitada no meu cachimbo de barro com fumo de rolo pra mode espantá os pirnilongos, que além de dá as rabanadas na cara da gente, ainda sonatava mais que folião da Folia do Divino. Lá pelas tantas o galo Gabrié cantou, me pus de pé. Na cozinha passei um café novo, cozinhei us mangarito e esperei o minino acordá. Acordando que seja, fui tê com ele. Tava bão. Por essa lúiz. O minino tava tinindo de bão.
Retirei os remédios. Seis não acreditam; a folha de baga tava tão seca, mais tão seca que quebrava anssim na mão da gente.
Aí Bidiquinho tomou café, pois tava com uma fome de comê o guardanapo da Santa Polônia, como dizia o padre. Mas não deixei ele brincá lá fora. Falei: - Bidiquinho,meu filho, voismecê vai ficá na cama por treis dias, não vai tomá banho, nem água fria, muito menus pegá vento. Porque se voimecê tomá um gorpe de ar depois desse sanapismo, voismecê fica torto. Anssim foi. 
Ai meu Deus o Antónho! Me dêem licença, vou a casa de Sinhá Josefa buscá folha de baga, ou seja, de mamona pra móde curá o Antónho.

Cada uma! Que mais parecem duas. Inté!

Fonte: O GUARUÇÁ

terça-feira, 4 de abril de 2017

NO TEMPO DE NOSSOS AVÓS

Tio Salvador e a caçoa, na Fortaleza (Arquivo JRS)

Canoas da Florentina (Arquivo JRS)

      Tio Neco, vivendo em seu retiro, passeia por todos os lados, em todos os assuntos. Na sua simplicidade tece comentários de tudo, mas a sua preferência é pelas coisas da nossa terra. Este texto foi indicado pelo mano Mingo.
     Aproveito para mandar um forte abraço ao meu amigo Napoleão, fiel leitor das nossas coisas. 


    O verdadeiro caiçara dos tempos de nossos avós

    Nas primeiras horas de um novo dia, logo de madrugadinha, lá estava ele de pé. Acendia a lamparina, preparava o café que tomava acompanhado com peixe assado e farinha de mandioca. Abastecia a barriga e saía para pescar.
   Preparava o balaio e as linhas de pesca, que naquele tempo era de cordonel. Se deslocava até ao rancho na praia, lugar onde as canoas dos pescadores ficavam guardadas.
   E ali chegando tirava a sua canoa do meio das outras, colocando-a sobre os rolos de madeira e empurrava-a até ao mar.
  Não podia esquecer o puçá. Arrumava os apetrechos na canoa e lançava-a na água até que flutuasse, pulava dentro e ficava em pé para remar até ao camaroeiro (lugar onde os camarões se agrupam). Ali ele jogava o puçá, amarrava o cabo de sustentação no banco da canoa e arrastava por um certo tempo.
 Quando tinha capturado camarões em quantidade suficiente, o pescador remava mar adentro pelo tempo de umas quatro horas e ali começava a pescaria.
 A pequena embarcação era suficiente para dois pescadores, que remavam de um lugar para outro até encontrar o peixe.
 Lá pelo meio-dia, horas dadas pela altura do sol, estavam eles retornando à praia.
 Seus familiares estavam esperando e não ficavam decepcionados. O pescador caiçara sempre voltava com a canoa cheia de peixes. Corvina, bagre, cação, xaréu... enfim, uma infinidade de peixes. Era tempo de fartura, ninguém passava necessidade de alimentos.
  Existia o essencial para a sobrevivência, todos tinham roça de mandioca e faziam farinha, colhiam feijão, plantavam café e tinham bananal nas encostas dos morros. Viviam da terra e do mar que dava o que era preciso para fazer o azul-marinho, a alimentação preferida dos caiçaras.
  Após uma refeição dessas vinha uma sonolência danada. Mal dava tempo de buscar a esteira que estava guardada em pé atrás da porta, jogar na sombra de uma árvore do quintal e dormir a sesta.

  Eta vida boa! Este era o viver do caiçara nos bons tempos.