segunda-feira, 20 de outubro de 2025

HÁ PONTE?

 

Caiçara no Camaroeiro - Arquivo Louzada


    Sim, há ponte, mas não há toda memória. Sei que foi o João Firmino quem a construiu. Era para passar gente, animal de carga de vez em quando. Agora passa carros leves e pesados caminhões. Ia da praia ao mato fechado, era o caminho para o Morro da Quina. Agora dá volta, chega no outro lado depois de cruzar o Araribá. Aquele rio vinha da vargem enriquecida com águas do Ingá e ganhava o outro grande já no mangue, não tão perto da casa da tia Brandina, no jundu da Maranduba, onde caiçaras antigos caçavam guenzo para se alimentar de forma diversificada. Viajante nenhum esquecerá o café amargo com peixe seco da saudosa hospitalidade. Titia era assim. Tempo depois, quando lotearam tudo, ela se viu obrigada a deixar aquele seu pedaço de chão próximo do rio que dava infinitas voltas. (Desde o início da década de 1960 está reto). Só ficou uma mangueira estimada que até hoje está lá bem próxima da atual rodovia. Nunca deu frutos;  só é testemunha do tempo. Mas de qual tempo? Da infância, no tempo da escravidão restante, na fazenda da Caçandoca? Da simplicidade no jundu, quase no Sapê? Do Sertão do Meio que a acolheu até o último suspiro?

  

   Agora a bruma já se levantou, mas o tempo continua incerto. Os tempos são outros! As esfarrapadas névoas levam lembranças das liberdades douradas. Há um silêncio acima de toda perturbação. O mar de peixes se torna mar sujo de tudo. Contra isto pouca gente luta apesar da imensa indignação. O viajante vai-se embora, mas sua figura continua sentado na beira da estrada, olhando o horizonte que separa o mar do céu. Sapê: aqui foi a primeira porta do paraíso. A ponte do João Firmino, neste dia de azul aguado, ainda resiste e existe na memória fraca. O céu tá limpo e lindo! Aquele canteiro cultivado com dedicação demonstra a grandeza da alma, do trabalho transformador dessa gente que se fez povoado à sombra do porto da Santa  Cruz e segue fazendo pontes universais. Tio Dito, tio Neco, Aquilau (que um dia me deu sementes de especula), Marcos, Tina, Claudinha, Giovana, Mônica, Maria Cruz, Rosa do Décio, Nié, madrinha Chica...Toda gente deste chão caiçara, deste sangue roceiro e pescador que esta terra gerou está na figura sentada na beira da estrada, na lembrança que não viajou. Depois da ponte, o viajante teve um arrepio. Pensou: depois do tudo vem o nada, mas qual será o futuro desse tudo? Há ponte?


domingo, 19 de outubro de 2025

ARRASTANDO

Canoas do pai - Arquivo JRS



 

Tio Chico, animado bem cedo,

quis saber da vovó:

Como começa o dia, mamãe?

Arrastando, meu filho.

Pensou: hoje tá ruim o seu humor.


Depois baixou a canoa no rolo,

se muniu de remo, puçá e balaio;

armou o traquete para reparar bem em tudo,

viu os tons de terra e de mato

e os azuis do mar: maior amor.


Depois do Ilhote do Pontal desceu o arrasto do puçá.

Água clara, águas a leste...

Longe um nevoeiro ameaça avançar,

lembranças do parceiro Hilário

quando a Aurora, da Sete Fontes,  transbordou.


Já faz tempo, agora têm filhos...

A cerração chegou junto com a puxada:

o ensacador estava abarrotado.

Gosta de nada ver, mas remar na sorte...

Titio aportou, tava certo no rumo que tomou.


sábado, 18 de outubro de 2025

CAMBUCI REDONDO?

   

Cambuci redondo - Arquivo JRS 

Os dois tipos - Arquivo JRS 

    "A gente, até o final da vida, vai aprendendo e vendo coisas diferentes", sempre dizia a tia Izolina Amorim. E é verdade mesmo! Sabe que dias desses, lá no Vale do Paty, aos sessenta e três anos, me deparei com uma árvore diferente, mas não muito estranha? Fui indagar do meu amigo depois de olhar bem as folhas e o tronco parecido com um cafeeiro bem ali, na porta da cozinha. "Maciel, esta daqui é do mato mesmo ou é alguma frutífera?". Ele, com aquela postura desafiadora, assim falou: "Você não conhece mesmo? É cambuci e é do mato!". Voltei a reparar na planta, amassei uma folha para cheirar: "É, tem cheiro de cambuci, mas as folhas são um pouco diferentes. Tem certeza que é cambuci?". Ele deu uma prazerosa risada: "Lógico que é, Zé. Só que é do redondo". Então me espantei: "Do redondo? Existe cambuci redondo?". Naquele instante ele entrou em casa e, do congelador, trouxe umas amostras. Não é que era redondo mesmo?!

  A velhice vai chegando, mas a vida não se cansa de nos surpreender. Quem diria que eu veria um cambuci redondo depois de achar que somente existia aquele levemente achatado, tipo disco voador?! Em seguida busquei avistar - e vi! -  outras árvores semelhantes. Que beleza! Espécies assim precisam ser preservadas, redescobertas por seus sabores e suas características inigualáveis graças à floresta preservada, à Mata Atlântica. Precisamos agradecer às comunidades tradicionais, às pessoas tipo Maciel que prezam pela diversidade e reproduzem espécies que nem imaginamos terem participado do sustento de nossos antepassados neste chão, nesta Mãe-Terra. Viva a natureza! Viva o Vale do Paty e tantos outros lugares que nos brindam com essas dádivas maravilhosas!


quarta-feira, 15 de outubro de 2025

O OURO DO JOÃO

 

Salve, João! - Arquivo JRS 

    João Carioca é uma amizade recente, do tempo em que eu viajava muito de ônibus para me deslocar no serviço diário. Bem cedo a gente se encontrava indo para a labuta. Logo nos descobrimos no prosear. Pensa numa pessoa boa de prosa. Assim é o João. Logo ele me confidenciou que foi parceiro do vovô Estevan, no tempo em que trabalharam no terminal da Petrobras, em São Sebastião, no final de década de 1960. O serviço deles era abrir valas para drenagem do terreno. Foi quem me contou da saudade que o vovô sentia da sua terra, das suas coisas, do seu pessoal. Frase recorrente dele ao avistar o mar, de acordo com o João, era: "Ai minha rede, ai minha canoa". Tinha vontade de voltar a pescar esse meu ente estimado demais, cujo nome repassamos ao nosso filho querido.  

    A história do João não começa em Ubatuba, pois caiçara não é. Ele é natural de Volta Redonda (RJ). Por desavenças na localidade causada pelo irmão mais velho, João achou por bem sair  do seu lugar de origem e procurar outros ares. Primeiro foi morar no bairro da Vargem Grande (Natividade da Serra), depois "escorregou" serra abaixo e veio parar em Ubatuba. Sempre disposto a fazer de tudo para garantir uma vida melhor aos familiares, ele passou por diversos empregos até se fixar na Estação Experimental do Horto Florestal onde, pelo empenho e honestidade, encontrou no diretor (Doutor Gentil) um ombro amigo. Transcrevo agora a fato que alavancou a vida desse meu amigo, segundo ele mesmo me contou mais de uma vez:

    "Escute bem, Zezinho. Eu trabalhava e morava no Horto, numa daquelas casinhas feitas para abrigar funcionários e familiares. Então cismei de criar umas galinhas para aliviar nas despesas. Falei como diretor, pedi autorização e contratei um ajudante para a tarefa. Num dos pontos marcados para receber uma coluna da cerca, nos deparamos com uma laje. Tinha espaço bastante para fazer outro buraco e assim escapar daquela barreira, mas eu era teimoso, queria porque queria que fosse ali fincado o esteio. Aquilo foi a minha sorte. Sabe o que tinha debaixo daquela barreira? Um cordão de ouro, um colar. Que fiz eu: levei e expliquei toda a história para o doutor Gentil para ele não pensar que eu tinha roubado de alguém. Para encurtar a história: ele levou o meu achado para ser avaliado em Campinas e se ofereceu em comprá-lo. Com o dinheiro que ganhei (graças à teimosia em abrir o buraco naquele lugar) eu pude investir: comprei uma bicicleta velha e nos momentos de folgas eu comecei a vender verduras. Pegava ali na Marafunda, na plantação dos Matsuoka, e seguia oferecendo os produtos pedalando pelos caminhos. Depois comprei uma carroça para vender areia retirada em pás do rio Grande por humildes trabalhadores e trabalhadoras. (A finada mãe do Ditão era uma dessas mulheres lutadoras. Ela deixava muitos homens no chinelo). Não demorou nada para eu adquirir um caminhão e poder entregar areia nos depósitos e obras mais distantes. Aí só cresci. Teve um tempo que, desde o Ipiranguinha até chegando perto da capela da Marafunda, tudo era porto de areia para  eu fazer as minhas cargas. Ganhei dinheiro, comprei terrenos, fiz casas... Muitas amizades permanecem desse tempo de muita labuta."


   Em tempo: atualmente João mora com uma das filhas, próximo do posto de saúde do bairro, no Ipiranguinha. Proseador dos bons tá ali!

terça-feira, 14 de outubro de 2025

DOENÇA FEIA

 

Noite de lua - Arquivo JRS 

   Tio Dário Barreto, da praia da Fortaleza, divagava em muitas prosas. Acredito que ele inventava bastante coisas para nos impressionar pelas palavras; misturava tudo com as suas experiências e conhecimentos para nos fazer rir e pensar. E conseguia! Todo mundo silenciava para ouvi-lo. Dificilmente ele se encontrava sozinho em algum lugar. Com o passar do tempo, ele ficou lento nas passadas, trôpego das pernas, com vistas curtas, mas nunca perdeu o dom de nos cativar pelas prosas. Certa vez eu perguntei a ele porque a nossa gente não dizia o nome de determinada doença incurável, chamando apenas pelo nome de "doença feia". Eis a resposta dele:

  

   "Saiba de uma coisa, menino: não presta a gente falar o nome de coisa ruim porque isso atrai o que não presta. É por isso que "coisa feia" é dita, para não resultar em mais doença [cusparada] que ainda ninguém conseguiu achar um remédio, não tem cura. Do mesmo modo não se pode chamar alguém de louco, de retardado [cusparada]. Também nunca diga o nome do anjo mau, que zela pelo inferno [cusparada]. Ele vem se as pessoas ficarem chamando. Cruz-credo! [se benzendo] Os nomes têm força, menino. Dentro de cada palavra mora um sentido com força. Ponha mão nessa pedra aí. Tais sentindo a dureza, o limo grudado nela? Tais sentindo o cheiro e o calor dela? Pois é, assim são os nomes! Uma porção de coisas dependem deles, lhe emprestam sentidos, têm força [energia] e afetam a gente ao serem ditos. Por isso eu recomendo: cuidado com as palavras que saem da sua boca.   Quando não puder dar uma guspalhada, bata na boca no mesmo instante"             

   Naquele tempo de criança em aprendi que cada cusparada queria expressar repugnância, coisa que não se desejava; palavra ruim que precisava ser cuspida, sair da nossa boca e se perder no chão. E o ato de se benzer era pedir a benção divina para nos livrar de todo mal, de todas as maldades resultantes do espírito maligno. Ah, como é difícil não se lembrar desses traços culturais!



domingo, 12 de outubro de 2025

SOMBRAS E IDEIAS

 

Sombra e nuvem - Arquivo JRS 

    Uma amiga desde o tempo de infância postou que continuava a olhar as nuvens e ainda enxergava as coisas que a gente via naquele tempo, quando nos deitávamos na areia da praia: baleias, borboletas, corações, barcos etc. Coisa de criança, coisas das nossas fantasias. Crescemos. Muitos de nós nem olha mais para o céu, mas ele está para todos e sempre tem novidades nas nuvens. Dê uma olhada de vez em quando.

    Outra diversão daquele tempo era aproveitar a luz da vela ou da lamparina para, com as mãos, projetar sombras na parede. Cachorro latindo tinha a minha preferência porque era mais fácil de fazer usando apenas uma das mãos, mas meu tio João era o craque no uso das duas, fazia coisas incríveis. Tente fazer sombras com suas mãos hoje, aproveite uma lanterna e se divirta como antigamente.

    As sombras, assim como as nuvens, nos apresentam ideias. Melhor dizendo: as ideias se manifestam porque imagens foram avistadas, imaginadas no céu, nas paredes etc. Enfim, nas possibilidades que surgiam nas brincadeiras do nosso tempo de criança. (Nunca precisou ter um Dia das Crianças!).  Crescemos. Para a maioria nem há sombras das ideias daquele tempo, mas posso garantir de que eram mais solidárias, menos egoístas, mais comunitárias, menos gananciosas. Eram ideias que prezavam pela amizade, pela vontade de ser feliz e de expandir tudo de bom que sentia. Em algum lugar desse universo infinito se encontram as ideias contra a intolerância, contra as mentiras que têm propósitos de conduzir os pobres para a alienação. Alguns poucos sabem - e fazem de tudo! - para dominar o mundo das ideias capazes de reconstruir o mundo em outras bases. (Imagine que agora até forçam ideias militares, via escolas, em cabeças infantis!) Matar a criança que existe em cada um de nós é uma meta dominadora. Triste, né? 

   Gente que me impressiona, segue com força no meu espírito, é gente que não deixa as ideias sumirem das sombras. Coitado daquele que se mantém na ignorância e só pode ler o mundo e os livros literalmente. Pobre daquele que não enxerga nada nas nuvens brincantes e nas sombras emocionantes das paredes. 




sábado, 11 de outubro de 2025

PARTILHA DO PÃO

  

Basta! - Arquivo internet

Decoração - Arquivo JRS

   Todos os dias, bem cedo, me detenho no morro  para  olhar a estrada lá embaixo:  passam   automóveis,   caminhões de cargas,  tropas de burros...  Seguem lenhadoras,  trabalhadores  braçais com  seus    embornais    e    cachorros...    Passam    depressa     os motoqueiros munidos de suas ferramentas... De vez em  quando  um preá ou uma lebre se tecem pelo asfalto também.

  Anteontem, quando uma chuva fina teimava em deixar o amanhecer mais frio, avistei um homem e seu cachorro que sempre seguem nesse ponto do dia para a labuta. Não consigo dizer se ele está com algum tipo de capa para se proteger, mas...pelas mãos nos bolsos, deduzo que sente o frio. Ouço um barulho se aproximando: desponta na curva o fusca branco do Chico da Tiana que trabalha numa fazenda distante sete quilômetros. Vai agora e volta pouco antes do anoitecer, só altera este ritmo aos domingos, dia de descanso. Todos estão se dirigindo aos seus lugares de trabalho. Humildes trabalhadores e trabalhadoras que me fazem lembrar de companheiros de outrora na construção civil e de partes de um poema de Vinicius de Moraes:


    Era ele que erguia casas

    Onde antes só havia chão.

    Como um pássaro sem asas

    Ele subia com as casas

    Que lhe brotavam das mãos.

    Mas tudo desconhecia

    De sua grande missão:

    Não sabia, por exemplo

    Que a casa de um homem é um templo

    Um templo sem religião

    Como tampouco sabia

    Que a casa que ele fazia

    Sendo a sua liberdade

    Era a sua escravidão.


    É assim, né? O trabalho acaba prendendo o ser humano. Pior: escraviza! Acorda, se alimenta olhando o relógio, sai às pressas com a preocupação de não ter esquecido nada, trabalha o dia inteiro muitas vezes sendo humilhado por um chefe ou patrão, volta para casa, toma banho, se alimenta e logo vai descansar para enfrentar um novo dia de trabalho algumas horas depois. E ainda tem gente, dona do capital, que acha pouco! Essa iniquidade exploradora, que atualiza o passado escravocrata, não quer nem imaginar o fim da escala de trabalho 6 X 1, diz que um dia de folga está bom aos seus trabalhadores e trabalhadoras.

    Mas voltando ao meu momento (de observação ao amanhecer): Chico da Tiana breca o fusca, oferece carona ao sujeito. "Agora o cachorro vai ter de correr atrás do carro se quiser seguindo o dono". Foi o meu pensamento. Pensei errado! O cachorro também foi colocado dentro do carro. Ou seja, a solidariedade foi demonstrada aos dois que seguiam juntos na fina chuva: homem e cão. Deve ser isso parte da ampla dimensão do gesto de repartir o pão, né?

    A campanha pelo fim da referida escala deve tocar nossos corações tal como está na poesia:

       

    E o operário ouviu a voz

    De todos os seus irmãos

    Dos seus irmãos que morreram

    Por outros que viverão.

    Uma esperança sincera

    Cresceu no seu coração

    E dentro da tarde mansa

    Agigantou-se a razão

    De um homem pobre e esquecido

    Razão porém que fizera

    Em operário construído

    O operário em construção.