segunda-feira, 20 de outubro de 2025

HÁ PONTE?

 

Caiçara no Camaroeiro - Arquivo Louzada


    Sim, há ponte, mas não há toda memória. Sei que foi o João Firmino quem a construiu. Era para passar gente, animal de carga de vez em quando. Agora passa carros leves e pesados caminhões. Ia da praia ao mato fechado, era o caminho para o Morro da Quina. Agora dá volta, chega no outro lado depois de cruzar o Araribá. Aquele rio vinha da vargem enriquecida com águas do Ingá e ganhava o outro grande já no mangue, não tão perto da casa da tia Brandina, no jundu da Maranduba, onde caiçaras antigos caçavam guenzo para se alimentar de forma diversificada. Viajante nenhum esquecerá o café amargo com peixe seco da saudosa hospitalidade. Titia era assim. Tempo depois, quando lotearam tudo, ela se viu obrigada a deixar aquele seu pedaço de chão próximo do rio que dava infinitas voltas. (Desde o início da década de 1960 está reto). Só ficou uma mangueira estimada que até hoje está lá bem próxima da atual rodovia. Nunca deu frutos;  só é testemunha do tempo. Mas de qual tempo? Da infância, no tempo da escravidão restante, na fazenda da Caçandoca? Da simplicidade no jundu, quase no Sapê? Do Sertão do Meio que a acolheu até o último suspiro?

  

   Agora a bruma já se levantou, mas o tempo continua incerto. Os tempos são outros! As esfarrapadas névoas levam lembranças das liberdades douradas. Há um silêncio acima de toda perturbação. O mar de peixes se torna mar sujo de tudo. Contra isto pouca gente luta apesar da imensa indignação. O viajante vai-se embora, mas sua figura continua sentado na beira da estrada, olhando o horizonte que separa o mar do céu. Sapê: aqui foi a primeira porta do paraíso. A ponte do João Firmino, neste dia de azul aguado, ainda resiste e existe na memória fraca. O céu tá limpo e lindo! Aquele canteiro cultivado com dedicação demonstra a grandeza da alma, do trabalho transformador dessa gente que se fez povoado à sombra do porto da Santa  Cruz e segue fazendo pontes universais. Tio Dito, tio Neco, Aquilau (que um dia me deu sementes de especula), Marcos, Tina, Claudinha, Giovana, Mônica, Maria Cruz, Rosa do Décio, Nié, madrinha Chica...Toda gente deste chão caiçara, deste sangue roceiro e pescador que esta terra gerou está na figura sentada na beira da estrada, na lembrança que não viajou. Depois da ponte, o viajante teve um arrepio. Pensou: depois do tudo vem o nada, mas qual será o futuro desse tudo? Há ponte?


domingo, 19 de outubro de 2025

ARRASTANDO

Canoas do pai - Arquivo JRS



 

Tio Chico, animado bem cedo,

quis saber da vovó:

Como começa o dia, mamãe?

Arrastando, meu filho.

Pensou: hoje tá ruim o seu humor.


Depois baixou a canoa no rolo,

se muniu de remo, puçá e balaio;

armou o traquete para reparar bem em tudo,

viu os tons de terra e de mato

e os azuis do mar: maior amor.


Depois do Ilhote do Pontal desceu o arrasto do puçá.

Água clara, águas a leste...

Longe um nevoeiro ameaça avançar,

lembranças do parceiro Hilário

quando a Aurora, da Sete Fontes,  transbordou.


Já faz tempo, agora têm filhos...

A cerração chegou junto com a puxada:

o ensacador estava abarrotado.

Gosta de nada ver, mas remar na sorte...

Titio aportou, tava certo no rumo que tomou.


sábado, 18 de outubro de 2025

CAMBUCI REDONDO?

   

Cambuci redondo - Arquivo JRS 

Os dois tipos - Arquivo JRS 

    "A gente, até o final da vida, vai aprendendo e vendo coisas diferentes", sempre dizia a tia Izolina Amorim. E é verdade mesmo! Sabe que dias desses, lá no Vale do Paty, aos sessenta e três anos, me deparei com uma árvore diferente, mas não muito estranha? Fui indagar do meu amigo depois de olhar bem as folhas e o tronco parecido com um cafeeiro bem ali, na porta da cozinha. "Maciel, esta daqui é do mato mesmo ou é alguma frutífera?". Ele, com aquela postura desafiadora, assim falou: "Você não conhece mesmo? É cambuci e é do mato!". Voltei a reparar na planta, amassei uma folha para cheirar: "É, tem cheiro de cambuci, mas as folhas são um pouco diferentes. Tem certeza que é cambuci?". Ele deu uma prazerosa risada: "Lógico que é, Zé. Só que é do redondo". Então me espantei: "Do redondo? Existe cambuci redondo?". Naquele instante ele entrou em casa e, do congelador, trouxe umas amostras. Não é que era redondo mesmo?!

  A velhice vai chegando, mas a vida não se cansa de nos surpreender. Quem diria que eu veria um cambuci redondo depois de achar que somente existia aquele levemente achatado, tipo disco voador?! Em seguida busquei avistar - e vi! -  outras árvores semelhantes. Que beleza! Espécies assim precisam ser preservadas, redescobertas por seus sabores e suas características inigualáveis graças à floresta preservada, à Mata Atlântica. Precisamos agradecer às comunidades tradicionais, às pessoas tipo Maciel que prezam pela diversidade e reproduzem espécies que nem imaginamos terem participado do sustento de nossos antepassados neste chão, nesta Mãe-Terra. Viva a natureza! Viva o Vale do Paty e tantos outros lugares que nos brindam com essas dádivas maravilhosas!


quarta-feira, 15 de outubro de 2025

O OURO DO JOÃO

 

Salve, João! - Arquivo JRS 

    João Carioca é uma amizade recente, do tempo em que eu viajava muito de ônibus para me deslocar no serviço diário. Bem cedo a gente se encontrava indo para a labuta. Logo nos descobrimos no prosear. Pensa numa pessoa boa de prosa. Assim é o João. Logo ele me confidenciou que foi parceiro do vovô Estevan, no tempo em que trabalharam no terminal da Petrobras, em São Sebastião, no final de década de 1960. O serviço deles era abrir valas para drenagem do terreno. Foi quem me contou da saudade que o vovô sentia da sua terra, das suas coisas, do seu pessoal. Frase recorrente dele ao avistar o mar, de acordo com o João, era: "Ai minha rede, ai minha canoa". Tinha vontade de voltar a pescar esse meu ente estimado demais, cujo nome repassamos ao nosso filho querido.  

    A história do João não começa em Ubatuba, pois caiçara não é. Ele é natural de Volta Redonda (RJ). Por desavenças na localidade causada pelo irmão mais velho, João achou por bem sair  do seu lugar de origem e procurar outros ares. Primeiro foi morar no bairro da Vargem Grande (Natividade da Serra), depois "escorregou" serra abaixo e veio parar em Ubatuba. Sempre disposto a fazer de tudo para garantir uma vida melhor aos familiares, ele passou por diversos empregos até se fixar na Estação Experimental do Horto Florestal onde, pelo empenho e honestidade, encontrou no diretor (Doutor Gentil) um ombro amigo. Transcrevo agora a fato que alavancou a vida desse meu amigo, segundo ele mesmo me contou mais de uma vez:

    "Escute bem, Zezinho. Eu trabalhava e morava no Horto, numa daquelas casinhas feitas para abrigar funcionários e familiares. Então cismei de criar umas galinhas para aliviar nas despesas. Falei como diretor, pedi autorização e contratei um ajudante para a tarefa. Num dos pontos marcados para receber uma coluna da cerca, nos deparamos com uma laje. Tinha espaço bastante para fazer outro buraco e assim escapar daquela barreira, mas eu era teimoso, queria porque queria que fosse ali fincado o esteio. Aquilo foi a minha sorte. Sabe o que tinha debaixo daquela barreira? Um cordão de ouro, um colar. Que fiz eu: levei e expliquei toda a história para o doutor Gentil para ele não pensar que eu tinha roubado de alguém. Para encurtar a história: ele levou o meu achado para ser avaliado em Campinas e se ofereceu em comprá-lo. Com o dinheiro que ganhei (graças à teimosia em abrir o buraco naquele lugar) eu pude investir: comprei uma bicicleta velha e nos momentos de folgas eu comecei a vender verduras. Pegava ali na Marafunda, na plantação dos Matsuoka, e seguia oferecendo os produtos pedalando pelos caminhos. Depois comprei uma carroça para vender areia retirada em pás do rio Grande por humildes trabalhadores e trabalhadoras. (A finada mãe do Ditão era uma dessas mulheres lutadoras. Ela deixava muitos homens no chinelo). Não demorou nada para eu adquirir um caminhão e poder entregar areia nos depósitos e obras mais distantes. Aí só cresci. Teve um tempo que, desde o Ipiranguinha até chegando perto da capela da Marafunda, tudo era porto de areia para  eu fazer as minhas cargas. Ganhei dinheiro, comprei terrenos, fiz casas... Muitas amizades permanecem desse tempo de muita labuta."


   Em tempo: atualmente João mora com uma das filhas, próximo do posto de saúde do bairro, no Ipiranguinha. Proseador dos bons tá ali!

terça-feira, 14 de outubro de 2025

DOENÇA FEIA

 

Noite de lua - Arquivo JRS 

   Tio Dário Barreto, da praia da Fortaleza, divagava em muitas prosas. Acredito que ele inventava bastante coisas para nos impressionar pelas palavras; misturava tudo com as suas experiências e conhecimentos para nos fazer rir e pensar. E conseguia! Todo mundo silenciava para ouvi-lo. Dificilmente ele se encontrava sozinho em algum lugar. Com o passar do tempo, ele ficou lento nas passadas, trôpego das pernas, com vistas curtas, mas nunca perdeu o dom de nos cativar pelas prosas. Certa vez eu perguntei a ele porque a nossa gente não dizia o nome de determinada doença incurável, chamando apenas pelo nome de "doença feia". Eis a resposta dele:

  

   "Saiba de uma coisa, menino: não presta a gente falar o nome de coisa ruim porque isso atrai o que não presta. É por isso que "coisa feia" é dita, para não resultar em mais doença [cusparada] que ainda ninguém conseguiu achar um remédio, não tem cura. Do mesmo modo não se pode chamar alguém de louco, de retardado [cusparada]. Também nunca diga o nome do anjo mau, que zela pelo inferno [cusparada]. Ele vem se as pessoas ficarem chamando. Cruz-credo! [se benzendo] Os nomes têm força, menino. Dentro de cada palavra mora um sentido com força. Ponha mão nessa pedra aí. Tais sentindo a dureza, o limo grudado nela? Tais sentindo o cheiro e o calor dela? Pois é, assim são os nomes! Uma porção de coisas dependem deles, lhe emprestam sentidos, têm força [energia] e afetam a gente ao serem ditos. Por isso eu recomendo: cuidado com as palavras que saem da sua boca.   Quando não puder dar uma guspalhada, bata na boca no mesmo instante"             

   Naquele tempo de criança em aprendi que cada cusparada queria expressar repugnância, coisa que não se desejava; palavra ruim que precisava ser cuspida, sair da nossa boca e se perder no chão. E o ato de se benzer era pedir a benção divina para nos livrar de todo mal, de todas as maldades resultantes do espírito maligno. Ah, como é difícil não se lembrar desses traços culturais!



domingo, 12 de outubro de 2025

SOMBRAS E IDEIAS

 

Sombra e nuvem - Arquivo JRS 

    Uma amiga desde o tempo de infância postou que continuava a olhar as nuvens e ainda enxergava as coisas que a gente via naquele tempo, quando nos deitávamos na areia da praia: baleias, borboletas, corações, barcos etc. Coisa de criança, coisas das nossas fantasias. Crescemos. Muitos de nós nem olha mais para o céu, mas ele está para todos e sempre tem novidades nas nuvens. Dê uma olhada de vez em quando.

    Outra diversão daquele tempo era aproveitar a luz da vela ou da lamparina para, com as mãos, projetar sombras na parede. Cachorro latindo tinha a minha preferência porque era mais fácil de fazer usando apenas uma das mãos, mas meu tio João era o craque no uso das duas, fazia coisas incríveis. Tente fazer sombras com suas mãos hoje, aproveite uma lanterna e se divirta como antigamente.

    As sombras, assim como as nuvens, nos apresentam ideias. Melhor dizendo: as ideias se manifestam porque imagens foram avistadas, imaginadas no céu, nas paredes etc. Enfim, nas possibilidades que surgiam nas brincadeiras do nosso tempo de criança. (Nunca precisou ter um Dia das Crianças!).  Crescemos. Para a maioria nem há sombras das ideias daquele tempo, mas posso garantir de que eram mais solidárias, menos egoístas, mais comunitárias, menos gananciosas. Eram ideias que prezavam pela amizade, pela vontade de ser feliz e de expandir tudo de bom que sentia. Em algum lugar desse universo infinito se encontram as ideias contra a intolerância, contra as mentiras que têm propósitos de conduzir os pobres para a alienação. Alguns poucos sabem - e fazem de tudo! - para dominar o mundo das ideias capazes de reconstruir o mundo em outras bases. (Imagine que agora até forçam ideias militares, via escolas, em cabeças infantis!) Matar a criança que existe em cada um de nós é uma meta dominadora. Triste, né? 

   Gente que me impressiona, segue com força no meu espírito, é gente que não deixa as ideias sumirem das sombras. Coitado daquele que se mantém na ignorância e só pode ler o mundo e os livros literalmente. Pobre daquele que não enxerga nada nas nuvens brincantes e nas sombras emocionantes das paredes. 




sábado, 11 de outubro de 2025

PARTILHA DO PÃO

  

Basta! - Arquivo internet

Decoração - Arquivo JRS

   Todos os dias, bem cedo, me detenho no morro  para  olhar a estrada lá embaixo:  passam   automóveis,   caminhões de cargas,  tropas de burros...  Seguem lenhadoras,  trabalhadores  braçais com  seus    embornais    e    cachorros...    Passam    depressa     os motoqueiros munidos de suas ferramentas... De vez em  quando  um preá ou uma lebre se tecem pelo asfalto também.

  Anteontem, quando uma chuva fina teimava em deixar o amanhecer mais frio, avistei um homem e seu cachorro que sempre seguem nesse ponto do dia para a labuta. Não consigo dizer se ele está com algum tipo de capa para se proteger, mas...pelas mãos nos bolsos, deduzo que sente o frio. Ouço um barulho se aproximando: desponta na curva o fusca branco do Chico da Tiana que trabalha numa fazenda distante sete quilômetros. Vai agora e volta pouco antes do anoitecer, só altera este ritmo aos domingos, dia de descanso. Todos estão se dirigindo aos seus lugares de trabalho. Humildes trabalhadores e trabalhadoras que me fazem lembrar de companheiros de outrora na construção civil e de partes de um poema de Vinicius de Moraes:


    Era ele que erguia casas

    Onde antes só havia chão.

    Como um pássaro sem asas

    Ele subia com as casas

    Que lhe brotavam das mãos.

    Mas tudo desconhecia

    De sua grande missão:

    Não sabia, por exemplo

    Que a casa de um homem é um templo

    Um templo sem religião

    Como tampouco sabia

    Que a casa que ele fazia

    Sendo a sua liberdade

    Era a sua escravidão.


    É assim, né? O trabalho acaba prendendo o ser humano. Pior: escraviza! Acorda, se alimenta olhando o relógio, sai às pressas com a preocupação de não ter esquecido nada, trabalha o dia inteiro muitas vezes sendo humilhado por um chefe ou patrão, volta para casa, toma banho, se alimenta e logo vai descansar para enfrentar um novo dia de trabalho algumas horas depois. E ainda tem gente, dona do capital, que acha pouco! Essa iniquidade exploradora, que atualiza o passado escravocrata, não quer nem imaginar o fim da escala de trabalho 6 X 1, diz que um dia de folga está bom aos seus trabalhadores e trabalhadoras.

    Mas voltando ao meu momento (de observação ao amanhecer): Chico da Tiana breca o fusca, oferece carona ao sujeito. "Agora o cachorro vai ter de correr atrás do carro se quiser seguindo o dono". Foi o meu pensamento. Pensei errado! O cachorro também foi colocado dentro do carro. Ou seja, a solidariedade foi demonstrada aos dois que seguiam juntos na fina chuva: homem e cão. Deve ser isso parte da ampla dimensão do gesto de repartir o pão, né?

    A campanha pelo fim da referida escala deve tocar nossos corações tal como está na poesia:

       

    E o operário ouviu a voz

    De todos os seus irmãos

    Dos seus irmãos que morreram

    Por outros que viverão.

    Uma esperança sincera

    Cresceu no seu coração

    E dentro da tarde mansa

    Agigantou-se a razão

    De um homem pobre e esquecido

    Razão porém que fizera

    Em operário construído

    O operário em construção.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

OS OLHOS

  

Margaridas - Arquivo JRS 

    "O belo é o terrível que contemplamos, sem que ele nos destrua" (Rilke)


    Já era metade da tarde, com um sol cheio de vontade, quando eu e minha esposa, nos deparando com uma frondosa árvore, resolvemos descansar num banco da beirada do rio. A mata ciliar - bem pouca! - se resumia em uma fina borda com variadas espécies de árvores. Uns ipês sustentavam suas últimas flores. De repente eu escutei um barulho, como se alguém andasse levemente sobre as folhas secas. Me virei devagar, avistei um lagarto  -dos grandes! 

    O lagarto seguia calmamente porque não pressentia perigo algum. Eu e minha companheira fomos acompanhando o seu deslizar entre o mato baixo e as pedras pequenas da ribanceira. Nisso chegou um carro, marca Fiat Uno, com dois homens jovens e uma criança que beirava os cinco anos. Deduzi que um deles era o pai da pequena. Subitamente o mais jovem percebeu o lagarto por ali, chamou a atenção para os demais enxergarem o bicho. Viram e se admiraram. Logo um dos parceiros, parecendo ser o pai da menina, pegou uma pedra grande para atirar no lagarto. O que fez a criança? Repetiu o mesmo gesto: se agachou e também pegou uma pedra. Na hora eu e a minha companheira repudiamos aquilo de querer assustar ou matar um ser que vive na beirada do rio, está sempre tranquilo por ali. Como pode uma coisa dessa? Além do adulto fazer uma coisa errada, ainda ensinou a criança a ir pelo mesmo caminho. 


   "Temos dois olhos. Com um contemplamos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro contemplamos as coisas da alma, eternas, que permanecem" (Angelus Silesius)


terça-feira, 7 de outubro de 2025

NEM TUDO É DIVINO

 


Viva a vida! - Arquivo JRS 
   
       Na minha infância, num tempo passado bem antes da metade do dia da minha vida, parece que havia mais religiosidade no ambiente, entre o povo caiçara. Predominava a igreja católica; só no centro da cidade havia duas outras diferentes: a Presbiteriana e a Assembleia de Deus. No bairro do Lázaro estava nascendo a Congregação Cristã. Eram narrativas diferentes disputando fiéis, querendo crescer em todos os sentidos. Criança pode  muitas vezes não falar, mas capta muitas coisas e fica pensando a seu modo a respeito de tudo que acontece à sua volta. Já naquele tempo eu queria entender porque sendo Deus um só havia essas igrejas, tantas religiões diferentes, com pregações diversas que causavam desavenças até mesmo entre alguns dos meus parentes próximos. Uns comentários pareciam justificar o troca-troca de religião: "Fulano, depois de engravidar aquela coitada, se arrependeu, mudou de igreja para mostrar que se converteu. Deus tá vendo!", "Beltrano foi pra tal igreja depois de passar a perna nos irmãos. Quem tá inconformada é a coitada da mãe dele", "Depois daquela briga não fui mais à missa. Quer me achar no domingo? Tô no culto orando!"...     

     Naquele tempo eu já me perguntava, mas tinha medo de comentar com alguém: "Como é possível tantas diferenças nas doutrinas de um só Deus?". Só exemplos das pessoas mais próximas e de algumas lideranças que se empenhavam em defender a justiça como vontade maior de Deus me convenciam de um caminho mais acertado. Veio a adolescência e a juventude, vieram outras igrejas mais diferentes ainda! Pastores motivavam as gritarias, colocavam caixas de som nas calçadas, falavam em "línguas" que não se entendia nada etc. Também o catolicismo se apresentou com novas tendências, cheias de "milagres", investindo em negócios tipo turismo religioso, medalhas milagrosas etc. As festas se tornaram pecado, dançar era coisa do Diabo em todas as vertentes religiosas que estavam no meu radar. (O saudoso Zé Pedro, da Fazenda da Caixa, mestre cirandeiro, me disse assim um dia: "Aqui na Picinguaba agora tem quatro igrejas diferentes, mas todas pregam que a dança é pecado. Por isso não existe mais a nossa Ciranda, tá se acabando tudo"). Após a década de 1970, a televisão ganhou os lares apresentando novidades de longe, inclusive pregadores que estavam ganhando fama mediante a espetacularização do sagrado. Daí chegamos esse modelo, a esse conjunto, como setas indo em todas as direções, incentivando perseguições aos diferentes, amortecendo a religiosidade local, prevalecendo o individualismo, fomentando a ganância, quebrando laços comunitários. Ótimo para quem quer explorar os pobres! A religiosidade foi ganhando outros contornos, aceitando o egoísmo e se conformando com as injustiças. Quem falava contra tudo isso precisava ser calado. A primeira lição cristã (de que as comunidades primitivas tinham tudo em comum, o denominado comunismo primitivo) caiu por terra porque passou a valer a máxima de "quem puder mais chora menos". Percebe a ruína da vida das comunidades caiçaras se aproximando? Percebe a espiritualidade dos mais pobres sendo corrompida por interesses dos mais ricos? Percebe os riscos à natureza única desse nosso lugar, desse chão caiçara?

   Hoje eu sigo nas minhas simples reflexões, recorrendo às palavras para entender melhor os rumos que aí estão sempre no objetivo de alienar as pessoas, de direcioná-las a este fim: mais gente deve concorrer para garantir os lucros de pouquíssimos. Não é difícil concluir de que as vontades divinas não são divinas. São projeções de gente como nós, mas diferente nos desejos: uns querem repartir, outros desejam acumular a qualquer preço. E assim, ao longo da história da humanidade, as teologias foram sendo construídas, elaboradas e reelaboradas. Com visões particulares e revoltas diversas surgiram muitas igrejas e chegamos às "vontades divinas" atuais, sendo opção de cada um abraçar aquela que melhor lhe convém. Na minha opinião, é caminho divino - traçado por humanos, lógico! - querer um mundo mais justo, onde a vida seja intensa e alegre para todos. Pessoas e grupos que buscam resgatar esses valores, destacá-los na nossa cultura pelo o bem da Terra e da humanidade, merecem todo o nosso reconhecimento e incentivo.

domingo, 5 de outubro de 2025

CANTA, MUNDO!

   

Cachorro na cidade - Arquivo JRS 

    Luiz Carlos Lisboa, no livro O Som do Silêncio, escreveu o seguinte:

  Ah, o desperdício de falar, quando há tanta coisa a ouvir de quem não tem nada a dizer. [...] Só é preciso prestar atenção e ficar em silêncio, para escutar a música que vem do mundo. Nela estão as respostas que procuramos, e nela está a certeza de que todas as perguntas são fúteis quando somos felizes. 

 Por mais que coisas terríveis sigam sendo praticadas pela humanidade, músicas brotam do mundo: é tico-tico em cantoria quase encostado na janela da minha casa bem cedinho, é o vento assobiando nas grandes árvores... É a preocupação da minha família e de gente alheia pela minha saúde, é vizinho que chega trazendo uma mudas ("Elas atraem muito os pintassilgos")... É a coragem de um considerável grupo querendo levar socorro pelo mar a um povo destruído pela infame guerra... Tudo é musicalidade do mundo querendo nos dizer algo!

   Músicas brotam pelos poros do mundo naqueles botões das roseiras e de margaridas que logo se destacarão em nosso terreiro e nas vizinhanças, pelos caminhos! Música do mundo me comove nos shows de artistas que bradam por um mundo mais justo! O som do mundo me abarca pelos gestos de partilha, pelas palavras animadoras de alguém que me conhece há pouco tempo... 

   E não é música o carinho gratuito dos animais que convivem conosco? E o que dizer daqueles bichos que, mesmo na movimentada cidade, abanam seus rabos aos se depararem conosco? 

   Que música bela saem dos lindos artesanatos, dos encantadores quadros pintados, das singelas fotografias, das impressionantes esculturas, das maravilhosas peças teatrais, dos desafios temáticos dos inspiradores filmes! E a música da alma que flui num texto literário? E os acordes cativantes que perpassam textos científicos desde uma ínfimo verme até as distâncias siderais? E os pés errantes e as mãos pedintes que possuem sonoridades questionadoras porque já fizeram artes? E o que dizer das peles lisas das crianças e das vestes rugosas de gente mais velha que nos tocam em tons de sabedoria? Tudo é música do mundo!

   Se há música...há energia!   Se há energia...há rastro que encanta tudo ao redor!    Se há música...precisamos saber ouvir!

   Que a música do mundo nos una para fazermos dele um lugar melhor  é o meu desejo.

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

DIA DE PRAIA

 

Cedinho - Arquivo Clóvis 

   Um conhecido, depois de passar o dia com a família numa praia, veio comentar comigo: "O dia estava lindo, o mar bem calmo, mas muita gente sem educação nenhuma acabou com a nossa alegria". Daí, enumerou um monte de absurdos que a gente já sabe. Creio que foi numa situação semelhante, depois de viver um dia de praia e mar, que levou o escritor Rubem Alves a produzir o seguinte texto:

    O que vi me despertou horror. Não, não amam o mar [...] Como nas privadas onde as pessoas escrevem obscenidades, sem dar conta de que ali mesmo, na parede pornográfica, está uma revelação de sua alma.

   As pessoas não vão para ouvir. Trazem consigo os demônios da agitação. Os rádios urram, cada qual a seu modo, sem que ninguém os ouça, sem que ninguém se importe. Porque não é música que se está buscando: é barulho que silencia o silêncio. Para que as vozes que moram nele não se façam ouvir. E a areia, pele branca e lisa do mar, se cobre de lixo: latas vazias, garrafas eternas de plástico, vidros quebrados, fraldas descartáveis, cascas de fruta, sobras de comida. E ninguém percebia que a areia sentia, que o mar sofria. Espaço invadido por demônios incontroláveis, os mansos perdendo sempre: chegam os rádios, vai-se o silêncio, a correria põe um fim à contemplação, o lixo se espalha sobre o branco. Ao fim do dia, a praia é um campo de batalha, coberto de destroços.

   Tristeza: ali estava a revelação de uma alma, pesadelo... 

   No quadro caótico de final de tarde em quase todas as praias, muito conhecido dos caiçaras, capaz de causa indignação em muita gente, está a alma destruidora da natureza e da paz que ela pode nos proporcionar para enfrentarmos o cotidiano de semana após semana. Ubatuba não pode seguir nesse rumo de destruição. Ousemos no exercício da cidadania!


sábado, 27 de setembro de 2025

SABERES ARTESANAIS, HERANÇA CULTURAL

 

Caiçarada 2025 - Arquivo JRS 


   Ao escutar a palavra herança eu deduzo que alguém deixou algo para outro alguém. É como um presente recebido. Portanto, herança cultural é tudo aquilo que marca uma cultura, que já veio de outras gerações e dará continuidade à atual e futuras. (Assim espero!). Desde quando nascemos (no seio de uma família e de uma comunidade), nós passamos a receber esses traços que marcam a cultura na qual nascemos. No caso da cultura caiçara, alguns exemplos de traços culturais: artesanato, canoagem, pescaria, culinária, religiosidade, causos, etnoconhecimento no geral e no contexto do ambiente mar-terra-serra. Ou seja, a cultura caiçara é a marca dessa minha gente que precisou sobreviver entre a serra e o mar. 

   Serra e mar são a caiçara (cercado, em tupi-guarani) natural de uma determinada faixa do litoral brasileiro, sendo o município de Ubatuba parte integrante. Herança cultural é aprendizagem, tem de ser ensinada! Por isso eu valorizo mestres e mestras desse universo caiçara! Viva toda essa gente que segue reproduzindo nossa cultura! 

   Vovó Martinha buscava junco na lagoa, escolhia depois de murchado, ensinava a fazer tranças e confeccionar chapéu. Vovô Armiro buscava taquara longe para, no terreiro, aprontar os balaios diversos. Meu pai fazia canoa, construía casas de pau a pique, entalhava etc. Minha mãe fazia o pirão mais apreciado por nós. Pedro Brandão corria folia e ensinava as cantorias. Dito Fernandes e Mocinha não deixaram morrer a congada. Tia Nair era craque em fazer e remendar redes de pesca. Neco é craque nos remos, cestaria e tantas coisas mais. João de Souza se destacou como contador de causos. Tia Maria Mesquita dominava a arte da taboa. Antônio Neves, até antes de se encantar pela caiçara de Sete Fontes, era o maior craque no bate-pé. João Zacarias, tio Chico, Pedro Cabral e muitos outros dominavam a arte da pesca. Doquinha, Maurício e outros eram músicos excelentes. Tio Dário muito me encantava com suas narrativas de façanhas exageradas. Vô Estevan e vó Eugênia tinham o dom de contar histórias. Laureana é a mestra do fandango. Vou parando por aqui, mas tem ainda muita gente para entrar nesta lista, sobretudo uma geração nova que muito me orgulha!

   Me inspirei a começar a escrever este quando, na praia do Cruzeiro, fiquei apreciando a corrida de canoa, no festival Caiçarada, na modalidade infantil, quando cada criança remava com um adulto, aprendia e se emocionava na proa que rompia as marolas, chegando na praia sob muitas palmas da plateia! Quer ensino-aprendizagem mais eficiente? É herança cultural se fortalecendo na diversidade cultural brasileira! É cultura resistindo à massificação cultural!

       A Mostra de Saberes Artesanais, na sua quinta edição, é uma oportunidade de apreciar traços culturais caiçaras. Local: Cadeia Velha, no centro de Ubatuba. Vai até 11 de outubro, a partir das 10 horas até a chegada do serão.  Passa lá para ver as obras!


sexta-feira, 26 de setembro de 2025

SENTIR A BELEZA

 


Arte Di Vicencio - Arquivo JRS 


  Creio que nascemos vendo e sentindo a beleza. A ternura da mãe, o seu olhar e sorriso nos acolhem num primeiro momento, no clarão da vida. Em seguida, o pai, todos os familiares, as visitas... Enfim, uma comunidade que acolhe, direciona cada novo ser e vai revelando as muitas nuances da beleza.

  A beleza externa de cada um também varia com a sensibilidade estética de cada um, com padrões definidos em uma determinada sociedade. E a beleza interna, aquela que motiva a vontade de viver, de não excluir ninguém da vida, de ser feliz e de espalhar a felicidade mundo afora? Rubem Alves escreveu que é esta que "os homens oferecem aos deuses como dádiva". Pode ser mesmo! 

  Quer presente maior que ser solidário com os que sofrem, promover a justiça, escutar ao menos as histórias de vida desse povo andarilho em nosso lugar? Quer dádiva superior a amar a natureza e desejá-la pura, sempre repleta de vida? Quer alegria tão grande quanto em compreender o tesouro da infância, ver os filhos alegres, trabalhando com dignidade? Quer alegria maior do que sentir, em companhia querida ou só, o quanto é amada a sua descendência direta e a sua irmandade? 

  Eu desejo que cada pessoa não se descuide do cultivo incessante da saúde e dessa beleza interior, digna da divindade. Por tal beleza - expressa em felicidade! -, a gente chora e ri. É ela que garante a vida na Terra, esta única beleza paradisíaca. Alguém duvida?


quinta-feira, 25 de setembro de 2025

O COISA RUIM É UMA LEGIÃO

 

Ninho ao vento - Arquivo JRS 

   As coisas próximas de nós nunca estarão totalmente numa boa. Assim também é mundo afora. Barcos navegam por mares mansos, mas também sucumbem em tormentas ou são atacados por maldade. No princípio da história humana, grupos nômades se enfrentavam na disputa de territórios de caça e coleta; mais tarde, os embates aconteciam para ter as melhores terras, se fazerem proprietários a qualquer custo. Países foram fundados, impérios vieram e se foram às custas de trabalhadores escravizados, de muita gente exterminada. Na atualidade, perseguições às minorias, invasões de terras das populações tradicionais, leis elaboradas para beneficiar a  ganância daqueles (que se compõem num número muito restrito de pessoas) seguem a mesma lógica (de exploração em nossa terra e em outras mais distantes). Ser criminoso parece estar sendo legalizado, pode tornar-se moralmente aceitável. Uma lei terrível ronda o nosso Brasil, onde o texto tem a seguinte ousadia: bandidos só serão julgados se seus pares permitirem. Algo mais terrível? Penso no genocídio contra os palestinos praticado pelo Estado de Israel. Tudo começou quando, há cerca de setenta anos, os países ricos, depois de saquearem a Palestina, decidiram criar naquele território outro país. De lá pra cá toda aquela área se tornou um eterno conflito. Imagine você ser tocado da sua casa, ter de ocupar um espaço restrito no seu quintal e terminar sendo perseguido até a morte, chegando assim à solução "abençoada por Yahweh". É esta a vontade de um ser divino? Pode sim se for um deus da guerra!

   Rubem Alves contou, certa vez, a história de um judeu, teólogo amigo dele, que dizia:

   "Depois do Holocausto é preciso dizer que Deus morreu...". E concluiu dizendo que ele não falava assim por impiedade, mas porque amava Deus. Como se dissesse: "Se Deus estivesse vivo, isso não teria acontecido". 

   Fico imaginando qual teor teria esse diálogo na atualidade, como seria a elaboração de uma justificativa teológica para esse outro Holocausto praticado nos territórios palestinos, nas áreas restritas de uma antiga Pátria-Mãe, sobretudo na Faixa de Gaza que, na concepção sionista, precisa ser varrida para sempre. Tenho a consciência de que muitos judeus não aprovam desmesurada maldade, do mesmo nível ou pior daquela impingida ao povo judeu à época da Segunda Guerra Mundial. Um holocausto tem muitas nuances, pode acontecer bem perto. Fico imaginando quantas famílias da minha cultura foram forçadas a se retirarem da beira do mar porque os ideais capitalistas se sobrepuseram aos princípios comunitários. As leis - poucas e baseadas em árduas lutas! - favoráveis aos que resistem à exploração nunca serão aceitas por quem deseja viver às custas dos outros. Sabe a razão? Porque, sempre escutei da caiçarada antiga, "o Coisa Ruim é uma legião".


quarta-feira, 24 de setembro de 2025

SETEMBRO AMARELO

  

Eis a  Terra -  Arquivo JRS 

      Viver bem: a vida devia ser só isso! 

        Eu estava lendo um texto de Rubem Alves, numa parte em que os médicos estão discutindo sobre o melhor tratamento. "O jeito científico se dá por uma pílula, um bisturi, uma radiação etc. Este é o método científico de pensar e de fazer", continua o autor, "mas eu ando pelo caminho da arte de curar, que é diferente. Acredito que, antes de mais nada, é preciso que se acenda, dentro desse corpo, a vontade de viver. E isto, vontade de viver, é coisa que nenhum prodígio da ciência tem o poder de produzir. E essa chama, que às vezes tem o nome de esperança e outras vezes de alegria, não existe receita que a produza. Só sei que, por vezes, ela se acende com uma única palavra, um único gesto, um único olhar... [...] Nada substitui a fome de viver. Sem fome de viver, o poder que mora no pão só servirá para alimentar os passarinhos. E não há receita para isto: para reacender a esperança e a alegria. Só sei que não moram nem nos remédios nem nos bisturis. Moram nas palavras, nos gestos, nos olhares...". Para terminar, um dos que assistiam a discussão perguntou: "Mas onde é que se ensina a arte de acender de novo a fome pela vida?". 

   Pode ser por um anjo que proporciona um trabalho digno, uma boa moradia, uma boa educação e boas condições de saúde... Pode ser por um anjo que sempre está em sua companhia para compartilhar os momentos... Pode ser por um anjo que ensina a amar os bichos, cultivar um jardim, a produzir alimentos saudáveis... Pode ser por um anjo que valoriza as amizades, a diversidade cultural, de gêneros... Pode ser por um anjo que viaja, se diverte junto com você e carrega junto a carga contra as injustiças de cada dia... Pode ser por um anjo que mostra que a cobiça pode acabar com esta Terra, pois não é preciso muita coisa para ser feliz!

terça-feira, 23 de setembro de 2025

ACENTO NÃO É ASSENTO

 

Florada - Arquivo JRS 

         Chegou a primavera. De novo? Parece que foi ontem a florada intensa das nossas orquídeas!

      Pois é, tudo tá muito rápido! Entre os dedos das mãos, tal como água que a gente bebia nas bicas de antigamente, a vida vai passando. Faz-me recorrer aos versos da Cecília Meireles:


Fico tão longe como a estrela.

Pergunto se este mundo existe,

e se, depois que se navega,

a algum lugar, enfim se chega...

O que será, talvez, até mais triste.

Nem barca, nem gaivota:

Somente sobre-humanas companhias.

Em suas mãos me entrego,

invisíveis e sem resposta.

Calada vigiarei meus dias.

Quanto mais vigiados, mais curtos!

Com a mágoa que o horizonte avisto...

Aproximando e sem recurso.

Que pena a vida ser só isso!


     São as humanas companhias que preparam cada manhã, cada dia de vida no qual esperamos simplesmente colher frutos. Não é assim? Humanas companhias que começam a se fazer nos embates da vida... Humanas companhias que nos deixaram na saudade... Humanas memórias que resistem!

    Uma das muitas memórias no horizonte são as curiosidades das palavras, dos lugares. Na minha infância, na praia do Perequê-mirim, em Ubatuba, existia a Pedra do Cágado, bem perto da casa do estimado casal Cunha/Vitalina, na beira do rio. Tinha essa denominação porque sempre alguém encontrava por ali algum cágado, espécie de quelônio raro no litoral. Eu mesmo cheguei a levar para casa um deles que por lá encontrei. Também ali por perto, na costeira da Bela Vista, depois da praia da Santa Rita, existia a Pedra do Cagado. Era assim chamada porque, diziam, naquele lugar, num dia de pescaria, o Mário do Xarazinho teve uma desinteria medonha, sendo preciso ser carregado para  não morrer ao avesso. Percebe que trata-se apenas de uma acento ortográfico fazendo toda a diferença? Quando, numa ocasião, eu comentava disso com o compadre Nilo Cabral, ele acrescentou: "E tem o cagadô, compadre!". É mesmo! Cagadô era o cagadouro. No tempo onde as casas caiçaras não tinham banheiro, era em algum lugar perto das moradias que as pessoas faziam suas necessidades, geralmente entre as bananeiras. (E pensar que isso tem menos de cem anos!). Com o tempo, cagadô virou sinônimo de coisa próxima, não tão longe. Assim o compadre ilustrou: "A gente era criança, saía pra pescá. Ia perto, ali no cagadô. Não demorava nada e logo a gente vortava com pampo, sargo, gudião e mais mistura para o armoço". 

     Ah! Salve essas memórias que resistem a tudo que passa tão depressa! Que pena a vida ser só isso!

sábado, 20 de setembro de 2025

MESTRE CHICÃO


Mestre Chicão  - Arquivo JRS 


     Ipiranguinha, bairro de Ubatuba que me acolhe há trinta anos, tem uma grande e diversa população. Dia e noite você encontra gente se movimentando em suas ruas, com destaque para uma classe trabalhadora sempre contribuindo muito com a vida econômica do município. Carros e bicicletas circulando comprovam o corre-corre da nossa gente. Além de tudo, esse nosso lugar tem uma intensa vida social, com movimentos e organizações de todas as matrizes. Dentre as lideranças locais, eu ouso destacar a do Mestre Chicão.

   Chicão, na sua humildade, em todos esses anos da minha convivência com a realidade local, escolheu a capoeira para dar a sua contribuição social. Quantas pessoas, motivadas por ele, passaram nesse esporte em todos esses anos? Centenas! Em seu humilde espaço, próximo da igreja católica do bairro, onde conheci a Madre Sofia, no início da década de 1980, tocando projetos de educação e de profissionalização, esse capoeirista veterano, cria do Mestre Preguiça, encarou o desafio de possibilitar treinamento a adultos, adolescentes e crianças. Seu lema, que eu escutava a cada oportunidade em que levava o meu filho para a roda de capoeira, era: "Esporte é vida". E, antes de iniciar os exercícios de aquecimento, Chicão fazia uma breve explanação do que o lema da academia perseguia e desejava a todos que o procuravam para aprender a arte da capoeira, esse esporte-jogo cultivado pelos ancestrais trazidos escravizados, no passado, da Mãe-África. Muito me orgulho dessa capoeira brasileira, dessa arte que hoje se espalhou pelo mundo inteiro!

      O nosso referido mestre capoeirista, em grande parte de seu tempo segue na lida de carpinteiro, se virando na sua profissão. Nasceu pobre e continua na labuta para sobreviver e manter seu projeto de vida (ensinar capoeira no bairro). Quem da vizinhança nunca ouviu as batidas e os cantos da Academia Liberdade Camará? Quem nunca presenciou encontros de capoeiristas promovidas em escolas do bairro? No entanto, dias desses eu encontrei o estimado mestre em situação precária, de muletas, quase não podendo andar pelas ruas do nosso bairro. Depois de perguntar do meu filho Estevan, seu aluno no passado, tristemente me contou: "Já faz tempo que surgiu um problema nas pernas. Incharam, surgiram umas bolhas. Dói demais. Eu tenho ido ao posto de saúde, fui examinado, mas ainda não descobriram o que é, nem conseguiram me curar. Eu tô levando as coisas assim, mas tá difícil. Nem tô podendo trabalhar. Tá difícil, viu!? Será que eu consigo receber uma cesta básica para aliviar um pouco?". Para piorar ainda mais, surgiu um problema na mão desse profissional, carpinteiro como o meu saudoso pai: um dedo atrofiou e segue sempre dolorido. Resumindo: a fase pela qual passa agora o estimado mestre de capoeira do bairro fez me lembrar uma frase da finada mãe do estimado Carlos Laureano: "Quando urubu tá com azar, o de baixo caga no de cima". É triste a situação do Mestre. O que a comunidade pode fazer em solidariedade e reconhecimento pelo significativo empenho desse Mestre à vida social do bairro?


 

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

VOLTA AO TEU BURACO

 

Um cemitério - Arquivo JRS 

   "O homem que nunca altera suas opiniões é como água parada: gera répteis na sua mente" (William Blake)


   De vez em quando me recordo de umas historinhas contadas pelos mais velhos na minha infância, geralmente nos finais de tardes ou nos dias chuvosos quando não se podia ficar saindo de casa para as reinações tão prazerosas. Quase sempre tinha coisa ruim acontecendo, até lobos apareciam em muitas delas. Na realidade de litoral, em terra de lobisomem esporádico, onde a criançada virava tudo ao avesso em busca de aventuras, não existia lobo. Portanto, esse ser era bicho ruim de outras terras. Assim aprendemos a temer os lobos. Mais tarde surgiram os sinônimos: lobo em pele de cordeiro, homem lobo do homem, à espreita como lobo etc. 

   Lobo se tornou coisa perigosa, gente que praticava crimes e toda variedade de maldades.

   Lobo era gente querendo roubar o pobre assim que saía o pagamento. Lobo era o aproveitador armando um esquema para ficar com a terra dos caiçaras, ter toda a paisagem do mar e das praias. Lobo era quem vivia vendendo drogas ilícitas, gerando mais dependentes. Lobo era o político se aperfeiçoando em suas falcatruas para viver cada vez mais às custas de quem trabalha. Lobo era o crime se organizando para render ainda mais e seguir impune. "Ah! Mas os lobos se dão mal no final das histórias!". Só nas contações os lobos são azarados! "Então, onde eles estão hoje?".  

   Os lobos, nos piores sinônimos acrescentados aos lobos genuínos das terras geladas, estão se revigorando sempre, mas muita gente - para o azar da coletividade!  - não faz questão em perceber. Antes, nas historinhas, eram caçados. Hoje se tornaram caçadores, fazem leis para si mesmos não serem julgados como lobos. Se juntaram a outros lobos (sob pele de cordeiro) porque compreenderam que é na estrutura política que se encontra a otimização de serem  caçadores de sucesso. Os lobos deixaram as matas e se consolidaram em alcateias nas cidades, nos parlamentos, no Congresso Nacional. São os donos da situação! Por isso podem criar suas próprias leis, dar os arremates primorosos ao crime organizado. Só eles podem julgar a si mesmos. Agora os lobos estão no cume da pirâmide, se compuseram na horda reacionária e se alimentam explorando mentiras semeadas na classe trabalhadora. Enfim, tornaram a política (arte de cuidar da cidade) em politicagem (artimanha da sujeira). Tá bom assim?

   


terça-feira, 16 de setembro de 2025

A VIDA DE UMA CANOA

Maria Eugênia e vô Leovigildo

 
Maria e Célia - Arquivo JRS 

  Pouco mais de vinte anos separam as duas imagens acima. Na primeira, Maria Eugênia, criança ainda, sentada sobre a última canoa de capurubu talhada com esmero pelo vô Gildo, no jundu do Itaguá, no terreno na beira da estrada, no lado oposto ao rancho dos pescadores, próximo da rua Holanda Maia. Tenho quase certeza que aquela árvore foi o último capurubu do Itaguá. Na segunda, Maria e Celinha posam junto à canoa CERNE, na ocasião da corrida de canoas do festival Caiçarada 2025, na praia do Cruzeiro, a Yperoig do povo Tupinambá.

    CERNE é aquela canoa talhada no grande capurubu por meu saudoso pai. Segundo André Damásio, hoje ela pertence ao Nélio, caiçara da Barra Seca, um dos remadores de destaque dessa geração que busca preservar a cultura caiçara.  Não  é emocionante ainda poder apreciar um traço cultural deixado por nosso pai? Não nos comove ver jovens remadores em suas potentes remadas abrindo a água e ganhando posições em tão singular canoa?

    No momento da segunda foto, contei ao André, Maria e Celinha que, na primeira travessia daquela canoa, eu remei com meu pai e o "Major". Foi uma procissão marítima, idealizada pelo Ney Martins, cujo percurso era capela do Itaguá -  porto do Cruzeiro. Era uma tarde de mar revolto, frio e com ventania regular. 

       Vida longa à canoa CERNE e à tradicional corrida de canoas do povo caiçara!

 

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

BEBENDO ÁGUA DO RIBEIRINHO

Flor de maracujá - Arquivo JRS 


Lá vai São Francisco pelo caminho

De pé descalço, tão pobrezinho

Dormindo à noite junto ao moinho

Bebendo água do ribeirinho...


     Este trecho de uma música já antiga, composta por Vinícius de Moraes em parceria com alguém que não me lembro agora, me convoca a refletir sobre a juventude que caminha neste mundo a cada manhã e no correr dos dias por conta das suas necessidades. Alguns têm empregos, muitos sobrevivem em condições degradantes. Alguns habitam lares, outros perambulam por áreas impróprias e ali se saciam de alguma forma. Alguns são amados, outros sucumbem a toda forma de violência. Alguns são nativos, caiçaras, filhos, netos, bisnetos de caiçaras, outros são migrantes, filhos, netos e bisnetos de gente que precisou deixar seu torrão natal em busca de melhores condições de vida, vieram parar em Ubatuba nesta intenção.

    Não é esse tipo de mundo  (onde poucos se apoderam de tudo e muitos estão totalmente desprovidos do básico por conta da ganância e injustiças) que eu desejo aos meus filhos, às novas gerações!


    Lá vai São Francisco tão pobrezinho! De qual ribeirinho ele poderá tomar água, retomar a sua dignidade desejada pela mãe e pelo pai no dia em que nasceu?

domingo, 7 de setembro de 2025

RESISTIR É PRECISO

 

Resistência - Arquivo JRS



        Há 31 anos se comemora, no dia 7 de setembro, por iniciativa da igreja católica do Brasil, o Grito dos Excluídos inspirado no Grito do Ipiranga.

     O Grito do Ipiranga é a denominação do momento em que o imperador Pedro I, em 1822, proclamou a independência do país em relação ao domínio de Portugal. Ele, na ocasião, se encontrava às margens do rio Ipiranga, hoje centro da cidade de São Paulo. Um artista imaginou o momento e pintou uma tela que hoje é famosa. Nós sabemos pouco, mas aprendemos na escola o quanto lucrou alguns países (Portugal, Inglaterra...) para o reconhecimento dessa independência. Melhor usar esta condição entre aspas, principalmente agora quando uma horda de gente que vive às custas de quem trabalha brada contra a nossa soberania, deseja continuar sendo quintal dos Estados Unidos da América.

    É Grito dos Excluídos porque são mais de 500 anos de injustiças, muitas delas nunca refletidas por nós no dia a dia. Os jovens querem trabalhar, mas quem oferece trabalho digno a essa juventude? Muita gente da minha geração, mesmo trabalhando sempre, mora em condições horríveis, se alimenta mal e não se diverte de verdade. Pior: não enxerga melhores dias para os seus descendentes. Na minha cidade, assim como na grande maioria das demais, os nativos devem ceder seus lugares aos que se apresentam com maior poder aquisitivo. Quem nasceu na praia não consegue arcar com os impostos que foram sendo aumentados de acordo com a especulação imobiliária e com a ganância perante as lindas paisagens do meu lugar, da terra dos meus ancestrais que me viu nascer. O que fazer? Vender e se afastar da beirada do mar, se fixar em áreas impróprias, nos mangues ou confins da serra, acabar com a mata e com os rios que descem da Serra do Mar. Precisa de um salário para viver? Vai a pé, pedala...Pega ônibus se puder pagar! Quem topa zerar imposto territorial ao nativo caiçara que persevera na cultura?

    Excluídos das condições de outrora, onde parecia haver mais dignidade, os pobres sobrevivem. Seus filhos não são obrigados a se conformarem, mas não enxergam saídas para a situação. Quem arruinou esses corpos que perambulam pelas ruas, estão dependentes de drogas, são desgraçados pelo sistema econômico que aí está? Quem terceiriza mão de obra em vez de efetivar os concursados? Quem fecha escolas de comunidades mais carentes? Quem é a favor de acabar com os direitos trabalhistas? Quem deixa de investir no transporte público? Quem deseja manter os pobres alienados promovendo shows bizarros na esteira da velhíssima máxima do pão e circo? Quem reproduz ideias arcaicas para fortalecer o poder de uma minoria? Quem acha certo o rico não pagar nada de impostos? Quem não perde a ocasião para desviar verbas públicas a fim de aumentar o seu patrimônio? Eu poderia ir muito mais que isto, mas vou parando por aqui. O resultado disso tudo é exclusão das camadas populares, do meu povo! Tempos atrás encontrei um jovem-envelhecido na praça 13 de maio, no coração da minha cidade (Ubatuba). Reconheci imediatamente e pensei: quando os pais eram vivos, moravam no beira da praia do Itaguá. Agora ele está mendigando na grama. Daqui a pouco chega a polícia e o expulsa também dali. Vai para onde? Como o poder público e privado lida com isso? De quem é a culpa maior pelo tanto de excluídos que só aumenta? Bem escreveu o meu amigo poeta Zé Vicente: "São os frutos do mal que floriu num país que jamais repartiu". A cada dia eu me pergunto: o que eu deixei de fazer para reverter esse quadro? Pior: tem até muitos caiçaras que aceitam a pecha de serem preguiçosos só porque o modo de vida dessa cultura tradicional se opõe às regras do sistema capitalista! E assim, engolindo a isca, os peixes menores de acabam entre si, não se reconhecem como excluídos. 

   Eu e possivelmente você, mesmo que em melhores condições, somos excluídos! Duvida disso? Quem vai se compadecer da sorte dos desgraçados? "Ah! É mais fácil apedrejar, tacar fogo, chutar, deixar apodrecer nas cadeias!". Ou seja: é mais comum piorar do que consertar. 

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

QUINTAL DOS LOPES

        

Quintal dos Lopes - Arquivo JRS 

"Aqui se encontram...". - Arquivo JRS 

     Como é bom visitar pessoas queridas e conhecer outras mais! Em mais uma oportunidade eu, Maria Eugênia e Domingos fomos visitar o Maciel no Vale do Paty. Dia bonito, sol que secava os caminhos da chuva do dia anterior, plantas das mais diversas dos dois lados, pelas grotas onde um discreto rio serpenteava. Do portão, no fim da estradinha, avistamos o nosso amigo com mais duas pessoas. Eram visitantes que passaram dois dias ali, mas já estavam de saída. Porém, ainda deu tempo de algumas prosas coalhadas de causos. Não seria desperdício descartar o título de: "Aqui se encontram caçadores, pescadores e outros mentirosos". Ou, se preferir, o dizer do finado pai do Tiagão de Itamambuca depois de um exagero no causo contado por alguém: "A providência divina é capaz de muitas coisas". (Em seguida, esse caiçara de outro tempo contava um causo mais caprichado). 

    Depois de muitas risadas acompanhado de farto café e de prazerosa prosa, vieram os preparativos para o almoço. Que fartura! Palmito dali mesmo, cortado há menos de dez metros do fogão estalando em labaredas, ervas buscadas na área da horta, farinha de mandioca feita no dia anterior, suco de caqui congelado da última safra etc. "Parece que a gente não para de comer quando vem aqui!". É assim mesmo, mano Mingo! Depois da refeição saímos pelos arredores para conhecer a vizinhança. Momento mais marcante: adentrar na propriedade, na casa dos irmãos Beto Lopes e Aparecida. Não é fácil descrever a beleza e a ordem do lugar mantida no coração do terreno, na casa impecável que um dia os avós habitaram. Nunca imaginei tantas plantas bem cuidadas, tantos arranjos de flores, tantos pés enormes de caquis, tanta água e criação na maior paz daquela irmandade. Deu vontade de não sair dali, de ficar sendo parte de tudo que se desenrola naquela área exemplar mantida pela família. É muita dedicação, minha gente!

   Há algumas décadas foi implantado no alto da serra o Núcleo Santa Virgínia visando preservar mais espaços da Mata Atlântica, mas ali, nos arredores da área do Maciel e dos irmãos Lopes, o que se verifica são os poucos espaços de mata nativa e os muitos hectares de cultivo de eucaliptos. "Quanto veneno já foi ou segue sendo usado por aqui?". Maciel diz que agora não pode dizer nada com certeza, mas no início, "milhares de litros de 'randapi' [herbicida roundup] foram aplicados no controle do mato". No final, aonde vai parar esse veneno? Me consola ver uma ou outra família resistindo em meio a tudo isso. "Mas tinha muito mais! Para você ter uma ideia, aqui havia duas escolas!". Isto eu pude constatar; as jabuticabeiras pelas matas e beiradas de estradas atestam uma ocupação razoável num passado nem tão distante, quando criação de gado sustentavam essa gente de serra acima. Foi a partir da segunda metade do século XX que teve início o êxodo das pessoas. O advento do turismo na cidade caiçara (Ubatuba) se tornou um atrativo poderoso à caipirada que tanto estimo.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

MEMÓRIA E MOVIMENTO

 

Borboleta - Arquivo Jair Antônio 

    De vez em sempre me pego pensando em gente e em momentos que se passaram há anos, em contextos diferentes do dias atuais e até mesmo em lugares distantes. Dias atrás, depois de me admirar com umas fotografias do amigo Jair Antônio, dono do restaurante Monte Moriá, em Marmelópolis (MG), me deparei com a amiga Nalva e mais gente numa manifestação defendendo a urgência de um terminal de ônibus urbano digno para a nossa cidade (Ubatuba) e fiquei me recordando de tanta gente boa que já cruzei na caminhada. Para ficar em apenas um exemplo: Vicente, quando estudávamos no início da juventude, certo dia apareceu vestindo uma camiseta com a sigla MeMo na parte da frente. "Ué, que é isso, meu irmão?". Ele se perfilhou, deu uma puxada na roupa e explicou: "É o meu lema a partir de hoje. Significa Memória e Movimento". Percebendo que eu esperava mais detalhes do tal MeMo, ele continuou: "Eu e o Chico decidimos morar juntos, fazer um trabalho de conscientização política e de solidariedade na parte mais pobre de Mauá, onde já está avançado o processo de favelização. Não é possível que as pessoas percam aos poucos até mesmo as condições básicas de sobrevivência e não questionem, não se organizem para resistir a todo tipo de opressão. O primeiro passo já demos, estamos morando no local, nas condições próximas dos moradores de lá. Nesse primeiro momento estamos visitando as famílias para estabelecer amizades e conhecimentos, saber um pouco das histórias de cada um, proporcionar oportunidades para relembrar/reavivar memórias". "Eu entendi bem até este ponto, irmão. Sei o quanto a memória da nossa trajetória de vida é capaz!". "Pois é, meu chapa. Então, a partir dessa etapa, bem dizer se dando logo a seguir, vem o Movimento, a delineação do que precisamos fazer para recuperar a dignidade daquele lugar, das pessoas que ali moram. Daí MeMo - Memória e Movimento". Achei louvável a decisão da dupla, mas muito desafiador. Vivendo de bicos seria muito difícil aos dois, mas me prontifiquei em ajudar de alguma forma. Afinal, um galho sozinho fica fácil de quebrar, mas juntando a outros se torna quase impossível a tarefa, né? Foi assim que eu, de um dia para outro, estava colaborando na estamparia de camisetas que seriam vendidas e formariam o primeiro fundo, o recurso econômico da MeMo em seus desafios. Resumindo a história: Vicente e Chico se tornaram queridos por toda gente dos arredores e ajudaram muito. Não demorou para que a força aumentasse: grupos religiosos diversos entraram na empreitada, novas lideranças políticas ligadas às causas populares se forjaram nas lutas por saneamento, área verde, transporte, saúde, lazer etc. Anos depois aquele bairro na periferia estava com uma cara bem diferente, até escola bem equipada já funcionava para atender a criançada que crescia. Onde foram parar os dois amigos? Chico se casou com alguém dali, continuou no bairro. Vicente partiu para a Amazônia, foi como enfermeiro voluntário numa comunidade ribeirinha bem distante de qualquer cidade, onde a coleta do açaí e a pescaria eram as principais fontes de renda. Nunca mais recebi notícias dele, mas tenho certeza que o princípio da Memória e Movimento jamais o deixará. O mesmo digo do Chico que será um militante contra as injustiças pelo resto da vida que ainda resta. Desejo muita força a esses irmãos e irmãs da utopia na vida plena!


terça-feira, 26 de agosto de 2025

INGRATOS (II)

 

Lago do Maciel - Arquivo JRS 


  Dias desses eu fiz questão de recordar uma lição que aprendi na escola: Ciro, o rei da Pérsia (atual Irã), foi quem libertou os judeus do exílio na Babilônia. Hoje, lendo uma história escrita por Lloyd Llewellyn Jones (Os Persas), quero transcrever algo que pode nos ajudar a entender melhor o assunto:


  Judeus cativos (como todos os outros deportados estrangeiros) estavam livres para voltar para casa. Em 537 a.e.c., mais de 40 mil deles empreenderam o que declararam ser o "segundo Êxodo" e alegremente voltaram a pé para Jerusalém e para a terra que manava leite e mel. É por isso que na Bíblia Hebraica Ciro passou a ser considerado um servo de Yahweh, e o escolhido pelo Deus invisível para libertar da escravidão Seu povo eleito. Assim, os profetas do exílio elogiaram Ciro como instrumento de libertação de Deus. Um profeta que conhecemos como Trito-Isaías (ou Terceiro Isaías) estava especialmente entusiasmado. Registrou o júbilo de Deus por ter encontrado um paladino tão digno:

  "Eis o meu servo, a quem protejo, meu escolhido, em quem me deleito. Eu lhe conferi o meu espírito, e ele fará resplandecer a justiça sobre as nações [...] Eu te tomei pela mão [Ciro], e te formei para que sejas a luz de todos os povos [...]" Assim diz Yahweh a Ciro: "Tu serás meu pastor para cumprir meus desígnios: reconstruir Jerusalém e lançar os alicerces do templo". Assim diz o Senhor a Ciro, seu ungido: a Ciro, cuja mão ele segurou com firmeza para subjugar as nações e destruir os mais poderosos reis.

   Em virtude de sua generosidade com os judeus, Ciro recebeu o título de meshiach - "Messias", "Ungido" ou "Consagrado" -, expressão que os judeus no exílio usavam ao falar de um salvador ou redentor enviado por Deus. Era um título profundamente teológico, que falava da ratificação de Ciro com um rei legítimo, nomeado e protegido por Deus. Nos Salmos, o Ungido é um líder idealizado, semimítico, um guerreiro que Deus defende e protege: "Agora sei que o Senhor salva o seu ungido; ele o ouvirá desde o Seu santo céu, com a força salvadora da sua mão direita".


    Pois é, minha gente: Ciro, um rei significativo para os povos iranianos e judeus! Mas por que fiz questão de relembrar a história? Porque, recentemente, Israel bombardeou o Irã. Só por isso! Nós, caiçaras de tradição cristã, precisamos saber de mais gente que recebeu este título de messias e o interesse no poder aí incluso. São narrativas que podem desencadear forças incríveis, inclusive servir para oprimir ainda mais o oprimido em vez de libertar.