sábado, 27 de setembro de 2025

SABERES ARTESANAIS, HERANÇA CULTURAL

 

Caiçarada 2025 - Arquivo JRS 


   Ao escutar a palavra herança eu deduzo que alguém deixou algo para outro alguém. É como um presente recebido. Portanto, herança cultural é tudo aquilo que marca uma cultura, que já veio de outras gerações e dará continuidade à atual e futuras. (Assim espero!). Desde quando nascemos (no seio de uma família e de uma comunidade), nós passamos a receber esses traços que marcam a cultura na qual nascemos. No caso da cultura caiçara, alguns exemplos de traços culturais: artesanato, canoagem, pescaria, culinária, religiosidade, causos, etnoconhecimento no geral e no contexto do ambiente mar-terra-serra. Ou seja, a cultura caiçara é a marca dessa minha gente que precisou sobreviver entre a serra e o mar. 

   Serra e mar são a caiçara (cercado, em tupi-guarani) natural de uma determinada faixa do litoral brasileiro, sendo o município de Ubatuba parte integrante. Herança cultural é aprendizagem, tem de ser ensinada! Por isso eu valorizo mestres e mestras desse universo caiçara! Viva toda essa gente que segue reproduzindo nossa cultura! 

   Vovó Martinha buscava junco na lagoa, escolhia depois de murchado, ensinava a fazer tranças e confeccionar chapéu. Vovô Armiro buscava taquara longe para, no terreiro, aprontar os balaios diversos. Meu pai fazia canoa, construía casas de pau a pique, entalhava etc. Minha mãe fazia o pirão mais apreciado por nós. Pedro Brandão corria folia e ensinava as cantorias. Dito Fernandes e Mocinha não deixaram morrer a congada. Tia Nair era craque em fazer e remendar redes de pesca. Neco é craque nos remos, cestaria e tantas coisas mais. João de Souza se destacou como contador de causos. Tia Maria Mesquita dominava a arte da taboa. Antônio Neves, até antes de se encantar pela caiçara de Sete Fontes, era o maior craque no bate-pé. João Zacarias, tio Chico, Pedro Cabral e muitos outros dominavam a arte da pesca. Doquinha, Maurício e outros eram músicos excelentes. Tio Dário muito me encantava com suas narrativas de façanhas exageradas. Vô Estevan e vó Eugênia tinham o dom de contar histórias. Laureana é a mestra do fandango. Vou parando por aqui, mas tem ainda muita gente para entrar nesta lista, sobretudo uma geração nova que muito me orgulha!

   Me inspirei a começar a escrever este quando, na praia do Cruzeiro, fiquei apreciando a corrida de canoa, no festival Caiçarada, na modalidade infantil, quando cada criança remava com um adulto, aprendia e se emocionava na proa que rompia as marolas, chegando na praia sob muitas palmas da plateia! Quer ensino-aprendizagem mais eficiente? É herança cultural se fortalecendo na diversidade cultural brasileira! É cultura resistindo à massificação cultural!

       A Mostra de Saberes Artesanais, na sua quinta edição, é uma oportunidade de apreciar traços culturais caiçaras. Local: Cadeia Velha, no centro de Ubatuba. Vai até 11 de outubro, a partir das 10 horas até a chegada do serão.  Passa lá para ver as obras!


sexta-feira, 26 de setembro de 2025

SENTIR A BELEZA

 


Arte Di Vicencio - Arquivo JRS 


  Creio que nascemos vendo e sentindo a beleza. A ternura da mãe, o seu olhar e sorriso nos acolhem num primeiro momento, no clarão da vida. Em seguida, o pai, todos os familiares, as visitas... Enfim, uma comunidade que acolhe, direciona cada novo ser e vai revelando as muitas nuances da beleza.

  A beleza externa de cada um também varia com a sensibilidade estética de cada um, com padrões definidos em uma determinada sociedade. E a beleza interna, aquela que motiva a vontade de viver, de não excluir ninguém da vida, de ser feliz e de espalhar a felicidade mundo afora? Rubem Alves escreveu que é esta que "os homens oferecem aos deuses como dádiva". Pode ser mesmo! 

  Quer presente maior que ser solidário com os que sofrem, promover a justiça, escutar ao menos as histórias de vida desse povo andarilho em nosso lugar? Quer dádiva superior a amar a natureza e desejá-la pura, sempre repleta de vida? Quer alegria tão grande quanto em compreender o tesouro da infância, ver os filhos alegres, trabalhando com dignidade? Quer alegria maior do que sentir, em companhia querida ou só, o quanto é amada a sua descendência direta e a sua irmandade? 

  Eu desejo que cada pessoa não se descuide do cultivo incessante da saúde e dessa beleza interior, digna da divindade. Por tal beleza - expressa em felicidade! -, a gente chora e ri. É ela que garante a vida na Terra, esta única beleza paradisíaca. Alguém duvida?


quinta-feira, 25 de setembro de 2025

O COISA RUIM É UMA LEGIÃO

 

Ninho ao vento - Arquivo JRS 

   As coisas próximas de nós nunca estarão totalmente numa boa. Assim também é mundo afora. Barcos navegam por mares mansos, mas também sucumbem em tormentas ou são atacados por maldade. No princípio da história humana, grupos nômades se enfrentavam na disputa de territórios de caça e coleta; mais tarde, os embates aconteciam para ter as melhores terras, se fazerem proprietários a qualquer custo. Países foram fundados, impérios vieram e se foram às custas de trabalhadores escravizados, de muita gente exterminada. Na atualidade, perseguições às minorias, invasões de terras das populações tradicionais, leis elaboradas para beneficiar a  ganância daqueles (que se compõem num número muito restrito de pessoas) seguem a mesma lógica (de exploração em nossa terra e em outras mais distantes). Ser criminoso parece estar sendo legalizado, pode tornar-se moralmente aceitável. Uma lei terrível ronda o nosso Brasil, onde o texto tem a seguinte ousadia: bandidos só serão julgados se seus pares permitirem. Algo mais terrível? Penso no genocídio contra os palestinos praticado pelo Estado de Israel. Tudo começou quando, há cerca de setenta anos, os países ricos, depois de saquearem a Palestina, decidiram criar naquele território outro país. De lá pra cá toda aquela área se tornou um eterno conflito. Imagine você ser tocado da sua casa, ter de ocupar um espaço restrito no seu quintal e terminar sendo perseguido até a morte, chegando assim à solução "abençoada por Yahweh". É esta a vontade de um ser divino? Pode sim se for um deus da guerra!

   Rubem Alves contou, certa vez, a história de um judeu, teólogo amigo dele, que dizia:

   "Depois do Holocausto é preciso dizer que Deus morreu...". E concluiu dizendo que ele não falava assim por impiedade, mas porque amava Deus. Como se dissesse: "Se Deus estivesse vivo, isso não teria acontecido". 

   Fico imaginando qual teor teria esse diálogo na atualidade, como seria a elaboração de uma justificativa teológica para esse outro Holocausto praticado nos territórios palestinos, nas áreas restritas de uma antiga Pátria-Mãe, sobretudo na Faixa de Gaza que, na concepção sionista, precisa ser varrida para sempre. Tenho a consciência de que muitos judeus não aprovam desmesurada maldade, do mesmo nível ou pior daquela impingida ao povo judeu à época da Segunda Guerra Mundial. Um holocausto tem muitas nuances, pode acontecer bem perto. Fico imaginando quantas famílias da minha cultura foram forçadas a se retirarem da beira do mar porque os ideais capitalistas se sobrepuseram aos princípios comunitários. As leis - poucas e baseadas em árduas lutas! - favoráveis aos que resistem à exploração nunca serão aceitas por quem deseja viver às custas dos outros. Sabe a razão? Porque, sempre escutei da caiçarada antiga, "o Coisa Ruim é uma legião".


quarta-feira, 24 de setembro de 2025

SETEMBRO AMARELO

  

Eis a  Terra -  Arquivo JRS 

      Viver bem: a vida devia ser só isso! 

        Eu estava lendo um texto de Rubem Alves, numa parte em que os médicos estão discutindo sobre o melhor tratamento. "O jeito científico se dá por uma pílula, um bisturi, uma radiação etc. Este é o método científico de pensar e de fazer", continua o autor, "mas eu ando pelo caminho da arte de curar, que é diferente. Acredito que, antes de mais nada, é preciso que se acenda, dentro desse corpo, a vontade de viver. E isto, vontade de viver, é coisa que nenhum prodígio da ciência tem o poder de produzir. E essa chama, que às vezes tem o nome de esperança e outras vezes de alegria, não existe receita que a produza. Só sei que, por vezes, ela se acende com uma única palavra, um único gesto, um único olhar... [...] Nada substitui a fome de viver. Sem fome de viver, o poder que mora no pão só servirá para alimentar os passarinhos. E não há receita para isto: para reacender a esperança e a alegria. Só sei que não moram nem nos remédios nem nos bisturis. Moram nas palavras, nos gestos, nos olhares...". Para terminar, um dos que assistiam a discussão perguntou: "Mas onde é que se ensina a arte de acender de novo a fome pela vida?". 

   Pode ser por um anjo que proporciona um trabalho digno, uma boa moradia, uma boa educação e boas condições de saúde... Pode ser por um anjo que sempre está em sua companhia para compartilhar os momentos... Pode ser por um anjo que ensina a amar os bichos, cultivar um jardim, a produzir alimentos saudáveis... Pode ser por um anjo que valoriza as amizades, a diversidade cultural, de gêneros... Pode ser por um anjo que viaja, se diverte junto com você e carrega junto a carga contra as injustiças de cada dia... Pode ser por um anjo que mostra que a cobiça pode acabar com esta Terra, pois não é preciso muita coisa para ser feliz!

terça-feira, 23 de setembro de 2025

ACENTO NÃO É ASSENTO

 

Florada - Arquivo JRS 

         Chegou a primavera. De novo? Parece que foi ontem a florada intensa das nossas orquídeas!

      Pois é, tudo tá muito rápido! Entre os dedos das mãos, tal como água que a gente bebia nas bicas de antigamente, a vida vai passando. Faz-me recorrer aos versos da Cecília Meireles:


Fico tão longe como a estrela.

Pergunto se este mundo existe,

e se, depois que se navega,

a algum lugar, enfim se chega...

O que será, talvez, até mais triste.

Nem barca, nem gaivota:

Somente sobre-humanas companhias.

Em suas mãos me entrego,

invisíveis e sem resposta.

Calada vigiarei meus dias.

Quanto mais vigiados, mais curtos!

Com a mágoa que o horizonte avisto...

Aproximando e sem recurso.

Que pena a vida ser só isso!


     São as humanas companhias que preparam cada manhã, cada dia de vida no qual esperamos simplesmente colher frutos. Não é assim? Humanas companhias que começam a se fazer nos embates da vida... Humanas companhias que nos deixaram na saudade... Humanas memórias que resistem!

    Uma das muitas memórias no horizonte são as curiosidades das palavras, dos lugares. Na minha infância, na praia do Perequê-mirim, em Ubatuba, existia a Pedra do Cágado, bem perto da casa do estimado casal Cunha/Vitalina, na beira do rio. Tinha essa denominação porque sempre alguém encontrava por ali algum cágado, espécie de quelônio raro no litoral. Eu mesmo cheguei a levar para casa um deles que por lá encontrei. Também ali por perto, na costeira da Bela Vista, depois da praia da Santa Rita, existia a Pedra do Cagado. Era assim chamada porque, diziam, naquele lugar, num dia de pescaria, o Mário do Xarazinho teve uma desinteria medonha, sendo preciso ser carregado para  não morrer ao avesso. Percebe que trata-se apenas de uma acento ortográfico fazendo toda a diferença? Quando, numa ocasião, eu comentava disso com o compadre Nilo Cabral, ele acrescentou: "E tem o cagadô, compadre!". É mesmo! Cagadô era o cagadouro. No tempo onde as casas caiçaras não tinham banheiro, era em algum lugar perto das moradias que as pessoas faziam suas necessidades, geralmente entre as bananeiras. (E pensar que isso tem menos de cem anos!). Com o tempo, cagadô virou sinônimo de coisa próxima, não tão longe. Assim o compadre ilustrou: "A gente era criança, saía pra pescá. Ia perto, ali no cagadô. Não demorava nada e logo a gente vortava com pampo, sargo, gudião e mais mistura para o armoço". 

     Ah! Salve essas memórias que resistem a tudo que passa tão depressa! Que pena a vida ser só isso!

sábado, 20 de setembro de 2025

MESTRE CHICÃO


Mestre Chicão  - Arquivo JRS 


     Ipiranguinha, bairro de Ubatuba que me acolhe há trinta anos, tem uma grande e diversa população. Dia e noite você encontra gente se movimentando em suas ruas, com destaque para uma classe trabalhadora sempre contribuindo muito com a vida econômica do município. Carros e bicicletas circulando comprovam o corre-corre da nossa gente. Além de tudo, esse nosso lugar tem uma intensa vida social, com movimentos e organizações de todas as matrizes. Dentre as lideranças locais, eu ouso destacar a do Mestre Chicão.

   Chicão, na sua humildade, em todos esses anos da minha convivência com a realidade local, escolheu a capoeira para dar a sua contribuição social. Quantas pessoas, motivadas por ele, passaram nesse esporte em todos esses anos? Centenas! Em seu humilde espaço, próximo da igreja católica do bairro, onde conheci a Madre Sofia, no início da década de 1980, tocando projetos de educação e de profissionalização, esse capoeirista veterano, cria do Mestre Preguiça, encarou o desafio de possibilitar treinamento a adultos, adolescentes e crianças. Seu lema, que eu escutava a cada oportunidade em que levava o meu filho para a roda de capoeira, era: "Esporte é vida". E, antes de iniciar os exercícios de aquecimento, Chicão fazia uma breve explanação do que o lema da academia perseguia e desejava a todos que o procuravam para aprender a arte da capoeira, esse esporte-jogo cultivado pelos ancestrais trazidos escravizados, no passado, da Mãe-África. Muito me orgulho dessa capoeira brasileira, dessa arte que hoje se espalhou pelo mundo inteiro!

      O nosso referido mestre capoeirista, em grande parte de seu tempo segue na lida de carpinteiro, se virando na sua profissão. Nasceu pobre e continua na labuta para sobreviver e manter seu projeto de vida (ensinar capoeira no bairro). Quem da vizinhança nunca ouviu as batidas e os cantos da Academia Liberdade Camará? Quem nunca presenciou encontros de capoeiristas promovidas em escolas do bairro? No entanto, dias desses eu encontrei o estimado mestre em situação precária, de muletas, quase não podendo andar pelas ruas do nosso bairro. Depois de perguntar do meu filho Estevan, seu aluno no passado, tristemente me contou: "Já faz tempo que surgiu um problema nas pernas. Incharam, surgiram umas bolhas. Dói demais. Eu tenho ido ao posto de saúde, fui examinado, mas ainda não descobriram o que é, nem conseguiram me curar. Eu tô levando as coisas assim, mas tá difícil. Nem tô podendo trabalhar. Tá difícil, viu!? Será que eu consigo receber uma cesta básica para aliviar um pouco?". Para piorar ainda mais, surgiu um problema na mão desse profissional, carpinteiro como o meu saudoso pai: um dedo atrofiou e segue sempre dolorido. Resumindo: a fase pela qual passa agora o estimado mestre de capoeira do bairro fez me lembrar uma frase da finada mãe do estimado Carlos Laureano: "Quando urubu tá com azar, o de baixo caga no de cima". É triste a situação do Mestre. O que a comunidade pode fazer em solidariedade e reconhecimento pelo significativo empenho desse Mestre à vida social do bairro?


 

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

VOLTA AO TEU BURACO

 

Um cemitério - Arquivo JRS 

   "O homem que nunca altera suas opiniões é como água parada: gera répteis na sua mente" (William Blake)


   De vez em quando me recordo de umas historinhas contadas pelos mais velhos na minha infância, geralmente nos finais de tardes ou nos dias chuvosos quando não se podia ficar saindo de casa para as reinações tão prazerosas. Quase sempre tinha coisa ruim acontecendo, até lobos apareciam em muitas delas. Na realidade de litoral, em terra de lobisomem esporádico, onde a criançada virava tudo ao avesso em busca de aventuras, não existia lobo. Portanto, esse ser era bicho ruim de outras terras. Assim aprendemos a temer os lobos. Mais tarde surgiram os sinônimos: lobo em pele de cordeiro, homem lobo do homem, à espreita como lobo etc. 

   Lobo se tornou coisa perigosa, gente que praticava crimes e toda variedade de maldades.

   Lobo era gente querendo roubar o pobre assim que saía o pagamento. Lobo era o aproveitador armando um esquema para ficar com a terra dos caiçaras, ter toda a paisagem do mar e das praias. Lobo era quem vivia vendendo drogas ilícitas, gerando mais dependentes. Lobo era o político se aperfeiçoando em suas falcatruas para viver cada vez mais às custas de quem trabalha. Lobo era o crime se organizando para render ainda mais e seguir impune. "Ah! Mas os lobos se dão mal no final das histórias!". Só nas contações os lobos são azarados! "Então, onde eles estão hoje?".  

   Os lobos, nos piores sinônimos acrescentados aos lobos genuínos das terras geladas, estão se revigorando sempre, mas muita gente - para o azar da coletividade!  - não faz questão em perceber. Antes, nas historinhas, eram caçados. Hoje se tornaram caçadores, fazem leis para si mesmos não serem julgados como lobos. Se juntaram a outros lobos (sob pele de cordeiro) porque compreenderam que é na estrutura política que se encontra a otimização de serem  caçadores de sucesso. Os lobos deixaram as matas e se consolidaram em alcateias nas cidades, nos parlamentos, no Congresso Nacional. São os donos da situação! Por isso podem criar suas próprias leis, dar os arremates primorosos ao crime organizado. Só eles podem julgar a si mesmos. Agora os lobos estão no cume da pirâmide, se compuseram na horda reacionária e se alimentam explorando mentiras semeadas na classe trabalhadora. Enfim, tornaram a política (arte de cuidar da cidade) em politicagem (artimanha da sujeira). Tá bom assim?

   


terça-feira, 16 de setembro de 2025

A VIDA DE UMA CANOA

Maria Eugênia e vô Leovigildo

 
Maria e Célia - Arquivo JRS 

  Pouco mais de vinte anos separam as duas imagens acima. Na primeira, Maria Eugênia, criança ainda, sentada sobre a última canoa de capurubu talhada com esmero pelo vô Gildo, no jundu do Itaguá, no terreno na beira da estrada, no lado oposto ao rancho dos pescadores, próximo da rua Holanda Maia. Tenho quase certeza que aquela árvore foi o último capurubu do Itaguá. Na segunda, Maria e Celinha posam junto à canoa CERNE, na ocasião da corrida de canoas do festival Caiçarada 2025, na praia do Cruzeiro, a Yperoig do povo Tupinambá.

    CERNE é aquela canoa talhada no grande capurubu por meu saudoso pai. Segundo André Damásio, hoje ela pertence ao Nélio, caiçara da Barra Seca, um dos remadores de destaque dessa geração que busca preservar a cultura caiçara.  Não  é emocionante ainda poder apreciar um traço cultural deixado por nosso pai? Não nos comove ver jovens remadores em suas potentes remadas abrindo a água e ganhando posições em tão singular canoa?

    No momento da segunda foto, contei ao André, Maria e Celinha que, na primeira travessia daquela canoa, eu remei com meu pai e o "Major". Foi uma procissão marítima, idealizada pelo Ney Martins, cujo percurso era capela do Itaguá -  porto do Cruzeiro. Era uma tarde de mar revolto, frio e com ventania regular. 

       Vida longa à canoa CERNE e à tradicional corrida de canoas do povo caiçara!

 

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

BEBENDO ÁGUA DO RIBEIRINHO

Flor de maracujá - Arquivo JRS 


Lá vai São Francisco pelo caminho

De pé descalço, tão pobrezinho

Dormindo à noite junto ao moinho

Bebendo água do ribeirinho...


     Este trecho de uma música já antiga, composta por Vinícius de Moraes em parceria com alguém que não me lembro agora, me convoca a refletir sobre a juventude que caminha neste mundo a cada manhã e no correr dos dias por conta das suas necessidades. Alguns têm empregos, muitos sobrevivem em condições degradantes. Alguns habitam lares, outros perambulam por áreas impróprias e ali se saciam de alguma forma. Alguns são amados, outros sucumbem a toda forma de violência. Alguns são nativos, caiçaras, filhos, netos, bisnetos de caiçaras, outros são migrantes, filhos, netos e bisnetos de gente que precisou deixar seu torrão natal em busca de melhores condições de vida, vieram parar em Ubatuba nesta intenção.

    Não é esse tipo de mundo  (onde poucos se apoderam de tudo e muitos estão totalmente desprovidos do básico por conta da ganância e injustiças) que eu desejo aos meus filhos, às novas gerações!


    Lá vai São Francisco tão pobrezinho! De qual ribeirinho ele poderá tomar água, retomar a sua dignidade desejada pela mãe e pelo pai no dia em que nasceu?

domingo, 7 de setembro de 2025

RESISTIR É PRECISO

 

Resistência - Arquivo JRS



        Há 31 anos se comemora, no dia 7 de setembro, por iniciativa da igreja católica do Brasil, o Grito dos Excluídos inspirado no Grito do Ipiranga.

     O Grito do Ipiranga é a denominação do momento em que o imperador Pedro I, em 1822, proclamou a independência do país em relação ao domínio de Portugal. Ele, na ocasião, se encontrava às margens do rio Ipiranga, hoje centro da cidade de São Paulo. Um artista imaginou o momento e pintou uma tela que hoje é famosa. Nós sabemos pouco, mas aprendemos na escola o quanto lucrou alguns países (Portugal, Inglaterra...) para o reconhecimento dessa independência. Melhor usar esta condição entre aspas, principalmente agora quando uma horda de gente que vive às custas de quem trabalha brada contra a nossa soberania, deseja continuar sendo quintal dos Estados Unidos da América.

    É Grito dos Excluídos porque são mais de 500 anos de injustiças, muitas delas nunca refletidas por nós no dia a dia. Os jovens querem trabalhar, mas quem oferece trabalho digno a essa juventude? Muita gente da minha geração, mesmo trabalhando sempre, mora em condições horríveis, se alimenta mal e não se diverte de verdade. Pior: não enxerga melhores dias para os seus descendentes. Na minha cidade, assim como na grande maioria das demais, os nativos devem ceder seus lugares aos que se apresentam com maior poder aquisitivo. Quem nasceu na praia não consegue arcar com os impostos que foram sendo aumentados de acordo com a especulação imobiliária e com a ganância perante as lindas paisagens do meu lugar, da terra dos meus ancestrais que me viu nascer. O que fazer? Vender e se afastar da beirada do mar, se fixar em áreas impróprias, nos mangues ou confins da serra, acabar com a mata e com os rios que descem da Serra do Mar. Precisa de um salário para viver? Vai a pé, pedala...Pega ônibus se puder pagar! Quem topa zerar imposto territorial ao nativo caiçara que persevera na cultura?

    Excluídos das condições de outrora, onde parecia haver mais dignidade, os pobres sobrevivem. Seus filhos não são obrigados a se conformarem, mas não enxergam saídas para a situação. Quem arruinou esses corpos que perambulam pelas ruas, estão dependentes de drogas, são desgraçados pelo sistema econômico que aí está? Quem terceiriza mão de obra em vez de efetivar os concursados? Quem fecha escolas de comunidades mais carentes? Quem é a favor de acabar com os direitos trabalhistas? Quem deixa de investir no transporte público? Quem deseja manter os pobres alienados promovendo shows bizarros na esteira da velhíssima máxima do pão e circo? Quem reproduz ideias arcaicas para fortalecer o poder de uma minoria? Quem acha certo o rico não pagar nada de impostos? Quem não perde a ocasião para desviar verbas públicas a fim de aumentar o seu patrimônio? Eu poderia ir muito mais que isto, mas vou parando por aqui. O resultado disso tudo é exclusão das camadas populares, do meu povo! Tempos atrás encontrei um jovem-envelhecido na praça 13 de maio, no coração da minha cidade (Ubatuba). Reconheci imediatamente e pensei: quando os pais eram vivos, moravam no beira da praia do Itaguá. Agora ele está mendigando na grama. Daqui a pouco chega a polícia e o expulsa também dali. Vai para onde? Como o poder público e privado lida com isso? De quem é a culpa maior pelo tanto de excluídos que só aumenta? Bem escreveu o meu amigo poeta Zé Vicente: "São os frutos do mal que floriu num país que jamais repartiu". A cada dia eu me pergunto: o que eu deixei de fazer para reverter esse quadro? Pior: tem até muitos caiçaras que aceitam a pecha de serem preguiçosos só porque o modo de vida dessa cultura tradicional se opõe às regras do sistema capitalista! E assim, engolindo a isca, os peixes menores de acabam entre si, não se reconhecem como excluídos. 

   Eu e possivelmente você, mesmo que em melhores condições, somos excluídos! Duvida disso? Quem vai se compadecer da sorte dos desgraçados? "Ah! É mais fácil apedrejar, tacar fogo, chutar, deixar apodrecer nas cadeias!". Ou seja: é mais comum piorar do que consertar. 

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

QUINTAL DOS LOPES

        

Quintal dos Lopes - Arquivo JRS 

"Aqui se encontram...". - Arquivo JRS 

     Como é bom visitar pessoas queridas e conhecer outras mais! Em mais uma oportunidade eu, Maria Eugênia e Domingos fomos visitar o Maciel no Vale do Paty. Dia bonito, sol que secava os caminhos da chuva do dia anterior, plantas das mais diversas dos dois lados, pelas grotas onde um discreto rio serpenteava. Do portão, no fim da estradinha, avistamos o nosso amigo com mais duas pessoas. Eram visitantes que passaram dois dias ali, mas já estavam de saída. Porém, ainda deu tempo de algumas prosas coalhadas de causos. Não seria desperdício descartar o título de: "Aqui se encontram caçadores, pescadores e outros mentirosos". Ou, se preferir, o dizer do finado pai do Tiagão de Itamambuca depois de um exagero no causo contado por alguém: "A providência divina é capaz de muitas coisas". (Em seguida, esse caiçara de outro tempo contava um causo mais caprichado). 

    Depois de muitas risadas acompanhado de farto café e de prazerosa prosa, vieram os preparativos para o almoço. Que fartura! Palmito dali mesmo, cortado há menos de dez metros do fogão estalando em labaredas, ervas buscadas na área da horta, farinha de mandioca feita no dia anterior, suco de caqui congelado da última safra etc. "Parece que a gente não para de comer quando vem aqui!". É assim mesmo, mano Mingo! Depois da refeição saímos pelos arredores para conhecer a vizinhança. Momento mais marcante: adentrar na propriedade, na casa dos irmãos Beto Lopes e Aparecida. Não é fácil descrever a beleza e a ordem do lugar mantida no coração do terreno, na casa impecável que um dia os avós habitaram. Nunca imaginei tantas plantas bem cuidadas, tantos arranjos de flores, tantos pés enormes de caquis, tanta água e criação na maior paz daquela irmandade. Deu vontade de não sair dali, de ficar sendo parte de tudo que se desenrola naquela área exemplar mantida pela família. É muita dedicação, minha gente!

   Há algumas décadas foi implantado no alto da serra o Núcleo Santa Virgínia visando preservar mais espaços da Mata Atlântica, mas ali, nos arredores da área do Maciel e dos irmãos Lopes, o que se verifica são os poucos espaços de mata nativa e os muitos hectares de cultivo de eucaliptos. "Quanto veneno já foi ou segue sendo usado por aqui?". Maciel diz que agora não pode dizer nada com certeza, mas no início, "milhares de litros de 'randapi' [herbicida roundup] foram aplicados no controle do mato". No final, aonde vai parar esse veneno? Me consola ver uma ou outra família resistindo em meio a tudo isso. "Mas tinha muito mais! Para você ter uma ideia, aqui havia duas escolas!". Isto eu pude constatar; as jabuticabeiras pelas matas e beiradas de estradas atestam uma ocupação razoável num passado nem tão distante, quando criação de gado sustentavam essa gente de serra acima. Foi a partir da segunda metade do século XX que teve início o êxodo das pessoas. O advento do turismo na cidade caiçara (Ubatuba) se tornou um atrativo poderoso à caipirada que tanto estimo.